A fotografia a preto e branco, as roupas solenes, a pose de estadista podem fazer-nos torcer logo o nariz, como fazem aquelas pessoas que estão convencidas que o cinema antigo é mau e que o mundo só começou nos anos 90, aqueles que agora estão sempre na moda. Efetivamente, a foto é de um homem antigo; nasceu em 1896, imagine-se. Cresceu na primeira República, acabou a universidade em 1919, esteve nas tertúlias modernistas com Fernando Pessoa e outros membros do Orfeu, fundou a revista Seara Nova com Aquilino Ribeiro e Raul Brandão, mas foi toda a vida um advogado e um administrador. Como não achar isto aborrecido, se continuamos a pensar que Portugal só ganhou cor depois do 25 de Abril e antes terá sido sempre “cinzento”, como diz a estafada metáfora do período salazarista.
Esta quarta-feira, a RTP2 estreia um documentário sobre a vida deste homem, um documentário que fica muito àquem da importância que ele teve em dar cor a este país. Quem diz cor, diz livros, música, dança, arte, educação, saúde, ciência. Porque em tempos como estes vale a pena olhar para aquilo que se ergue contra a morte e a passagem do tempo, vale a pena conhecer a vida de José Azeredo Perdigão, o homem a quem todos devemos ter, em Portugal, a Fundação Calouste Gulbenkian.
O documentário, da autoria de Paulo Seabra, “Azeredo Perdigão e a Constante Evolução”, passa pelas 23h15 e mostra duas coisas muito importantes: a indissociabilidade entre o advogado e a face humanista, cosmopolita e robusta da Fundação que ele criou. Sim, o dinheiro e as obras de arte eram de Calouste Gulbenkian. Mas foi Azeredo quem transformou um testamento, um conjunto de folhas em papel selado, numa obra ímpar, cujo impacto chegou a todo o país, às vidas dos seus contemporâneos e às gerações futuras.
O Observador foi falar com José Blanco, advogado e ensaísta que foi adjunto de Perdigão, trabalhou mais de quatro décadas na administração da Gulbenkian, e é uma das personalidades entrevistadas no documentário, que, infelizmente, faz desfilar uma corte de políticos e ex-políticos, mas não vai ouvir um só artista, um só cientista e são tantos aqueles que devem a sua formação, o seu trabalho às decisões, às escolhas e prioridades que Azeredo Perdigão impôs à instituição.
José Blanco faz questão de dizer que “gostou” do trabalho de Paulo Seabra e “só lamenta” que não tenha sido mais explorado o papel determinante que Perdigão teve ao convencer Calouste a trocar Londres por Lisboa para deixar a Fundação e a sua preciosa coleção de arte e depois a forma hábil com que ele dirigiu as batalhas judiciais que se seguiram à morte do milionário”.
Estas batalhas de que fala José Blanco foram com Lord Radcliffe, o jurista inglês que o testamento de Calouste indicava para presidir a Fundação e que contestou que esta ficasse em Lisboa e depois com o filho, Nubar Gulbenkian, que contestava o testamento por ter sido virtualmente deserdado pelo pai. E, na verdade, deve-se à habilidade de Perdigão, que até conseguiu o apoio de Salazar e do governo nesta questão, a desistência de Lord Radcliffe não só do processo como do cargo de presidente e depois de Nubar, com o qual chegou a um acordo jurídico.
Depois disto viria a outra batalha que seria a criação real da Fundação e do museu que pudesse acolher e exibir da melhor forma a coleção de arte da Gulbenkian, da qual fazem parte obras valiosíssimas de artistas como Rembrandt, Turner, Latour, Degas, Verlaine, Rodin, Lalique, entre muitos outros, entre arte grega, egípcia, turca, etc. Mas, muitos anos antes de estarem concluídos os edifícios que hoje conhecemos, o trabalho da fundação já começara.
Pela mão de Azeredo e da sua mulher Madalena, criam-se a orquestra e o ballet Gulbenkian, com o escritor Branquinho da Fonseca, criam-se as famosas bibliotecas itinerantes, criam-se bolsas de estudo nacionais e internacionais, recupera-se património dentro de Portugal, nas ex-colónias, no Brasil, fazem-se obras de beneficência na Arménia, de onde era originária a família Gulbenkian, funda-se o Instituto de Ciência, pagam-se traduções de autores portugueses em diversas línguas, faz-se uma coleção de arte moderna de artistas portugueses… e seria impossível elencar todas as atividades, exposições, conferências, concertos que a fundação veio a patrocinar e/ou a acolher. “A fundação foi, durante décadas o motor cultural e científico deste país”, afirma José Blanco antes de acrescentar “mas sinto que hoje perdeu muita da sua importância, não sei porque é que isso aconteceu, o país mudou muito, mas tenho pena.”
Anatomia de um homem de coragem
O pai de Azeredo Perdigão era um republicano convicto que um dia trocou Viseu por Lisboa para integrar a Assembleia Constituinte, em 1911. Foi portanto educado no espírito da República, e a sua personalidade cedo se revelou nas escolas e colégios por onde passou e depois na sua proximidade com escritores e poetas, os modernistas sobretudo. Cedo se tornou reconhecido como jurista e ganhou mesmo a alcunha de “o divino mestre”, pelas suas peças jurídicas perfeitas.
Quando, em 1942, o milionário engenheiro petrolífero turco de ascendência arménia, Calouste Gulbenkian, se instala em Lisboa no hotel Avis, em consequência da II Guerra Mundial, pediu que lhe indicassem um advogado português e indicaram-lhe Azeredo Perdigão como sendo “o melhor”. Gulbenkian mandou recado para o escritório do jurista a pedir que fosse ao seu encontro. Azeredo não terá gostado, terá dito qualquer coisa como “ele que venha ter comigo se quer os meus serviços”. E terá sido necessária a intervenção de um amigo comum para ele aceder a ir visitar Gulbenkian. Não obstante, tornaram-se amigos e juntos mudaram o destino de Portugal.
No final dos anos quarenta envolve-se na política, apoiando a candidatura do general Norton de Matos, nunca escondeu que não apoiava Salazar, que, como conta José Blanco, o chamava de “vermelhusco”. Já depois de a Fundação estar a funcionar, há-de ter a PIDE na sua cola, por supostamente “apoiar artistas comunistas” mas hoje, diz José Blanco, “há quem lhe queira colar o rotulo de fascista, coisa que ele nunca foi”.
“Tenho muitas saudades dele”, confessa José Blanco e lembra, rindo muito, que se tratava de um “homem muito vaidoso, um dandy que nunca saía à rua sem uma pérola na gravata, muito conquistador, mas, sobretudo, com uma capacidade incrível de aceitar ideias novas, desafios, era um pouco como o Álvaro de Campos, ‘gostava de gostar de gostar'”. Mas era também muito exigente “tudo tinha que estar perfeito”. O antigo administrador da fundação lembra também a visita o Museu Gulbenkian de Sir Kenneth Clark, historiador e crítico de arte inglês, além de conselheiro de Calouste na aquisição de obras. “Clark não acreditava na capacidade de Portugal gerir uma coleção daquelas e eu levei-o a visitar o museu antes da inauguração oficial e ele ia soltando exclamações de espanto à medida que via as soluções expositivas que tinham sido encontradas para cada obra e acabou por mudar todo o discurso que tinha preparado. Mas Azeredo exigia de todos os que trabalhavam com ele ,a perfeição e, ao mesmo tempo, um espírito de missão, de amor à camisola. A fundação era não só uma missão dele mas também nossa.”
Em 1969, José de Azeredo Perdigão casa com Madalena Biscaia, a pianista que ele tinha convidado para criar o serviço de música. Madalena, muito mais nova, foi um dos seus braços direitos, e a ela se deve a criação do Ballet Gulbenkian ou do ACARTE. Quando morreu, em 1993, o jurista tinha erguido uma estrutura monumental que ia da arte à saúde, da educação à investigação. “O primeiro computador que veio para Portugal foi comprado pela instituição”, refere José Blanco, ele próprio com uma vida dedicada à instituição. Teve convites do general Spínola e depois de Francisco Sá Carneiro para cargos no governo mas sempre recusou: “Não me parecia que o meu cargo na Gulbenkian fosse compatível com atividades políticas”, afirma. “Sempre estive contra a ligação da Gulbenkian a partidos políticos.
Hoje, que já está reformado há mais de uma década, José Blanco, que entre outras coisas, é um conhecido estudioso da obra de Fernando Pessoa, diz que sobretudo “lamenta que estejam a apagar o nome e a presença de Azeredo Perdigão”.