Quase a fazer 94 anos, Custódia da Cruz Moura já passou por muito na vida. “Racionamentos, falta de comida, muitas coisas que se têm passado ao longo de cem anos.” Hoje, tem medo da rua. E, em tempos de pandemia, deixa um apelo à população: “Temos de cumprir com os conselhos que ouvimos na televisão, pelas pessoas de direito. Temos de ter muito respeito pela nossa parte da saúde“.

O forte apelo desta mulher foi partilhado na segunda-feira pela Casa de Repouso Varandas da Malveira, no concelho de Mafra, onde Custódia vive desde março de 2017, e começou a circular nas redes sociais em grande escala na manhã desta terça-feira, depois de o vídeo ter sido divulgado no Instagram pela apresentadora de televisão Cristina Ferreira.

Bom dia, Portugal. Fala uma utente da Casa de Repouso Varandas da Malveira. Vou comunicar que essa utente é uma jovem com vida, mas já com quase 94 anos. Vou tentar fazer um apelo a todos, mas a todos deste país, até se possível chegar ao mundo inteiro”, começa por dizer Custódia, num vídeo gravado esta segunda-feira naquele lar de idosos.

“Como todos sabem, a notícia já é muito divulgada, estamos a atravessar uma fase muito má. Eu tenho a comunicar, para lhes dizer o seguinte: eu sou filha de um combatente da Primeira Grande Guerra. A partir daí, tenho acompanhado guerras. Racionamentos, falta de comida, muitas coisas que se têm passado ao longo de cem anos. Eu já estou quase lá a chegar. Por isso, eu tenho conhecimento”, continua a mulher.

Na mensagem — que é feita “em representação de todos os séniores” daquele lar —, Custódia faz um apelo: “Haja alguém que consiga combater, porque não é possível estar a morrer tanta gente, doentes, o país pára, não só o meu, como todos os outros países. Isto é inacreditável. Peço que sejam unidos, que cumpram com os seus deveres. Não é destruir, é construir!

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Depois, Custódia deixou uma mensagem aos jovens. “Estamos cá, com muita juventude, com escolas paradas, não pode ser. A juventude são os homens e as mulheres de amanhã. Eu já passei também por essa juventude, lutei para que não hoje tivesse uma velhice como estou a atravessar, cheia de medo, porque ainda tenho medo da rua.

“Nós estamos aqui com muito cuidado, isolados, porque tem de haver muitos cuidados. E sobretudo também peço à população para estarmos unidos. Temos de cumprir com os conselhos que ouvimos na televisão, pelas pessoas de direito. Temos de ter muito respeito pela nossa parte da saúde. Os médicos, a enfermagem, que têm sido uns lutadores, para eles vai um grande apelo de amor, de carinho, de amizade”, pediu a mulher, arrancando um forte aplauso entre os outros idosos presentes.

Segundo explicou ao Observador Sandrina Queiroz, a animadora do lar que na segunda-feira mobilizou os idosos para fazer o apelo ao país, a pandemia tem sido um tema recorrente de conversa entre os residentes do lar. “No lar, nem todos estão bem cognitivamente. Mas os que estão passam muito tempo a ver televisão. Quando lá estou, desligo, para não estarmos só a ver notícias. Os que entendem estão preocupados. Têm filhos e não os podem ver, agora que não há as visitas devido à situação em que o país se encontra“, explicou a animadora.

Custódia da Cruz Moura, que não tem filhos, mas tem um sobrinho “que criou como se fosse um filho”, é já bem conhecida no lar como uma oradora eloquente. “É uma senhora que tem uma lucidez incrível e que está a perceber tudo o que se está a passar. Ela fala muito bem, é muito boa com as palavras. Sempre que há uma festa, é ela quem dá umas palavras finais. Ontem estávamos na casa de repouso a trabalhar normalmente, alguns estavam a comunicar com as famílias por vídeochamada, e lembrei-me da dona Custódia”, conta Sandrina.

Custódia — que trabalhou durante anos nos escritórios da Companhia União Fabril (CUF) e vive desde 2017 naquele lar, onde também reside o marido, de 97 anos —, aceitou fazer o discurso em nome dos idosos do lar. “O que importa é passar esta mensagem deles“, sublinha a animadora.

Ao fim de mais de três minutos de discurso, a mulher termina com outro elogio aos profissionais de saúde: “Uma grande salva de palmas que eu peço aqui deste lar para todos os utentes da saúde, que estão a arriscar a vida deles para nos salvar. Um grande bem haja para vocês todos. E para todo o mundo, tenham cuidado, não se deixem ir abaixo, lutem sempre pelo melhor. Muito obrigado e até um dia destes. Eu cá estarei novamente“.