Criado em 1973 pelo celebrado escritor policial Robert B. Parker, o detetive privado Spenser, nado e criado em Boston e influenciado pelo Philip Marlowe de Raymond Chandler, mas com vários traços do próprio autor, é um veterano da Guerra da Coreia que praticou pugilismo e foi agente da lei antes de se estabelecer por conta própria. O facto de ser um típico “duro” com muita experiência das ruas e conhecimento do mundo do crime, não o impediu de ter frequentado uma universidade católica e de gostar de ler e cozinhar. Tem uma namorada psicóloga e é ajudado nas suas investigações pelo matulão Hawk, outro nativo de Boston como ele. Na televisão, Spenser foi bem personificado por Robert Urich na série dos anos 80 “Spenser: For Hire”, que passou em Portugal ao tempo na RTP2, e depois por Joe Mantegna em três telefilmes, entre 1999 e 2001.

[Veja o genérico da série dos anos 80, “Spenser: For Hire”:]

Spenser (Robert B. Parker nunca quis que o seu primeiro nome fosse conhecido) chegou agora à Netflix com “Spenser: Confidencial”, de Peter Berg, interpretado por Mark Wahlberg. Mas as semelhanças entre a personagem de Parker e o Spenser de Wahlberg ficam-se por serem ambos de Boston, terem sido polícias, terem como amigos mais próximos o citado Hawk e Henry Cimoli, o dono de um ginásio e gostarem de cães. De resto, não há praticamente nada em “Spenser: Confidencial” que os leitores dos livros reconheçam como do universo do detetive. A começar pelo Spenser proletarizado e descaracterizado de Wahlberg, igual a milhentos outros detetives privados duraços, gozões, com bom fundo sob o ar rude e incorruptíveis.

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[Veja o “trailer” de “Spenser: Confidencial”:]

Até o Hawk de Winston Duke é irreconhecível, um lutador brutamontes amigo dos animais e de comida saudável, e com um coração de ouro, que se veste à “rapper” e serve apenas como passivo “homem das forças” do herói. Onde o Hawk de Parker é um perito em armas de fogo, aprecia boas roupas e fatos de fino corte, e anda sempre a respigar com Spenser. Já o veterano Alan Arkin faz um correcto Cimoli, enquanto que a namorada do detetive (Ilisa Shlesinger) foi transformada numa esfomeada sexual que fala pelos cotovelos e trata de cães em casa. Custa que acreditar que um dos argumentistas de “Spenser: Confidencial” seja Brian Helgeland, que além de ter ganho um Óscar da categoria (a meias com Curtis Hanson) por “LA Confidencial”, escreveu “Mystic River”, de Clint Eastwood, ou “Payback”, que também realizou.

[Veja uma entrevista com três dos atores:]

Mesmo um espectador que nunca tenha lido uma única linha dos livros de Spenser escritos por Robert B. Parker (após a sua morte, em 2010, a série foi continuada por Ace Atkins), nem visto um só episódio da série com Rober Urich (que a RTP Memória bem podia repetir, a propósito), não se deixará convencer por esta história monotonamente estereotipada (e isto apesar do ritmo mata-cavalos com que Peter Berg, qual trolha da ação, a filma) de corrupção generalizada em Boston, em que uma série de agentes corruptos da polícia local estão mancomunados com um gangue hispânico e com políticos, numa negociata que envolve tráfico de drogas e especulação imobiliária.

O Spenser veterano de guerra, apreciador de bom uísque e gastrónomo, com uma visão filosófica das relações entre homens e mulheres, profundo conhecedor dos meandros de Boston e com sentido de humor, não se reconheceria neste estereótipo ambulante e descartável de “thriller policial” corporizado por Mark Wahlberg em “Spenser: Confidencial”, e merecia muito, mas muito melhor.