Foi a 24 de agosto de 1281 que Guglielma, uma mulher que diziam ser santa, morreu na Abadia Cisterciense de Chiaravalle, nos arredores de Milão. Guglielma tinha chegado há cidade do norte da Península Itálica cerca de 20 anos depois e, embora tivesse vivido uma vida humilde e recatada, a sua fama de beata fez com que reuni-se em torno de si um pequeno mas fiel grupo de seguidores. Da vida desta mulher santa pouco se sabe. Enquanto viveu, Guglielma pouco ou nenhum impacto teve na sociedade que a rodeava. Depois da sua morte, porém, o seu nome foi usado para justificar um movimento herético em muitos aspetos revolucionário. Os Guglielmitas, nome dado ao seu grupo de seguidores, defendia a reforma da Igreja Católica e a eleição de uma papisa para a liderar, com base na crença de que Guglielma era a encarnação do Espírito Santo.

Pouco se sabe sobre as origens de Guglielma. Os documentos que chegaram até aos dias de hoje dão conta do seu aparecimento na cidade de Milão em 1260, vinda de parte incerta, na companhia do filho. O seu marido teria, supostamente, morrido. Algumas fontes falam numa origem nobre, e apontam-na como filha ou irmã do rei da Boémia, uma histórica região da Europa Central.

Alguns investigadores modernos acreditam que pode ter sido de facto assim, e que Guglielma era filha de Ottakar I e da sua segunda mulher, a rainha Constança da Hungria. Se isto é verdade, então Guglielma pertencia uma linhagem de mulheres nobres consideradas santas. É este o caso de Isabel da Hungria (sobrinha de Constança da Hungria e tia-avó de Isabel de Aragão, rainha de Portugal), Margarida da Hungria, sobrinha desta, e Inês de Praga, filha de Constança. O ano do seu nascimento é geralmente apontada como sendo cerca de 1210.

Em Milão, Guglielma procurou viver uma vida humilde. Tornou-se numa pinzorecha, uma religiosa que vivia de forma independente na sua própria casa. Apesar de discreta, o seus ensinamentos (que incluíam a necessidade de levar uma vida honesta e correta) começaram a atrair um grupo íntimo de seguidores, composto por homens e mulheres. Para isto contribuiu também a sua fama de curadora e milagreira, mas também o boato de que seria filha de Ottakar I. Guglielma acabou por chamar a atenção dos monges da Abadia Cisterciense de Chiaravalle, nos arredores da cidade, que a respeitavam profundamente. Foi, aliás, em Chiaravalle que a pinzorecha morreu, a 24 de agosto de 1281, cerca 20 anos depois de ter chegado a Milão. Tornou-se rapidamente objeto de culto. Na abadia, onde foi sepultada, foi mandado construir um altar sobre a sua campa, que estava sempre iluminado, mandado pintar um fresco com a sua imagem e começaram a ser organizadas festas em sua honra, como se de uma verdadeira santa se tratasse.

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Chiaravalle tornou-se no centro do culto público de Guglielma, mas em Biassono, num convento de freiras da ordem Umiliate, que os seus seguidores se reuniram. Era neste espaço conventual que viva uma das figuras mais proeminentes do movimento herético, a irmã Maifreda da Pirovano. Na segurança do seu convento, Maifreda comportava-se e era reverenciada como uma sacerdotisa, celebrando sacramentos que apenas os padres podiam realizar: ungia os fiéis com água benta em que as relíquias de Guglielma tinham sido lavadas, consagrava a hóstia, dava a comunhão e chegou mesmo a celebrar a Eucaristia, embora isso só tenha acontecido na Páscoa de 1300. A seguir a Maifreda, o membro mais importante dos Guglielmitas, o nome dado ao grupo de seguidores, era Andrea Saramita, um leigo a quem Guglielma chamava “o meu primogénito”.

A Abadia Cisterciense de Chiaravalle, nos arredores de Milão, tornou-se, depois da morte de Guglielma, o centro do seu culto público (De Agostini via Getty Images)

A encarnação feminina do Espírito Santo

Para os Guglielmitas, Guglielma era muito mais do que uma mulher devota ou até mesmo uma santa. Depois da sua morte, o grupo, influenciado por Maifreda da Pirovano e Andrea Saramita, procurou difundir uma outra ideia da alegada filha de Ottakar I, que alterou para sempre o seu legado e que providenciou, ao mesmo tempo, uma rara oportunidade para o poder feminino, quase sem expressão dentro da Igreja Católica. Isto porque o grupo acreditava que Guglielma era a encarnação do Espírito Santo e que, enquanto parte da Santíssima Trindade, tinha sofrido os mesmos tormentos físicos que Cristo, recebido os mesmos estigmas que ele (stigmata) e ressuscitado após a morte. À semelhança da Virgem Maria, a sua gravidez tinha-lhe sido anunciada por um arcanjo, neste caso Rafael.

Segundo os seguidores, o Espírito Santo tinha regressado à terra com o objetivo de renovar a Igreja, eleger um novo Colégio de Cardeais e selecionar uma nova liturgia e evangelhos. Tinha-o feito sob a forma de mulher porque, caso contrário, teria morrido (como Jesus Cristo morreu) e o mundo teria sido destruído. Esta nova Igreja seria estabelecida por altura da segunda vinda de Guglielma, quando os Judeus, os cistercienses e todos aqueles que não seguiam os seus ensinamentos da encarnação feminina do Espírito Santo seriam perdoados. Uma vez que o Espírito Santo tinha encarnado numa mulher, esta devia ser liderada também por uma mulher, provavelmente Maifreda da Pirovano.

Este movimento acabou por chamar a atenção do Tribunal Dominicano, que conduzia a Inquisição em Milão, depois de um dos seus membros ter admitido as suas crenças à pessoa errada. Um primeiro interrogatório foi conduzido em 1284, que depois deu origem a um longo inquérito que se prolongou de 1295 a 1296, do qual não sobreviveu nenhum registo. Alguns anos depois, foi aberto um outro, igualmente longo, que decorreu entre os meses de abril e novembro de 1300 e que envolveu pelo menos 33 testemunhas. Maifreda e Saramita foram condenados à fogueira, juntamente com uma segunda freira, a irmã Giacoma dei Bassani. Os restantes condenados foram sentenciados a pagar multas ou a usar cruzes penitenciais.

Numa tentativa de exterminar o culto de Guglielma, os inquisidores de Milão ordenaram que os seus restos mortais foram exumados e queimados e as suas imagens, na abadia cisterciense e em Milão, fossem destruídas. Quase 20 anos depois da sua morte, Guglielma foi condenada postumamente, com base numa confissão provavelmente conseguida através de tortura. A Inquisição milanesa levou ainda a cabo uma quarta investigação, em 1302, envolvendo um monge da Abadia de Chiaravalle.

Os Guglielmitas acabaram por desaparecer e hoje nada mais são do que uma curiosidade histórica, interessante pelas suas crenças, teologicamente problemáticas e polémicas, mas também pela predominância das mulheres. Na Idade Média, tal como hoje, a Igreja Católica tem um estrutura predominantemente masculina, onde as mulheres não têm acesso a posições de poder. Guglielmitas defendiam precisamente o contrário — o trono de S. Pedro devia ser de uma mulher.