A estreia do primeiro reality show inteiramente produzido pela Netflix acontece numa altura tão bizarra no mundo que “Love Is Blind” quase parece ter o seu quê de distopia. Mas acalmemos os ânimos e não lhe reservemos tanta importância epistemológica. Trata-se só de (mais) uma variação do formato de dating entre desconhecidos, com a diferença de que apenas se podem ver depois de decidirem ficar noivos.

Confuso? Eu explico melhor – apesar de, em abono da verdade, ter de admitir que o meu visionamento é várias vezes interrompido por uma criança que tem o seu próprio show de preferência, também com um grupo de ambos os sexos mas com menos cio: a “Patrulha Pata”. 30 pretendentes, divididos num grupo de 15 homens e 15 mulheres, têm 38 dias para passarem por três fases diferentes que resultarão indubitavelmente no amor da sua vida. A primeira fase é a que dá o nome ao programa. Todos poderão conversar com todos a sós, numa variação de todos os hipotéticos casais possíveis, mas não se podem ver. Uma parede especial separa ambos os elementos do encontro amoroso, que se encontram num pod (uma espécie de casulo) futurista chamado Cápsula Privada. É o derradeiro teste aos sapiossexuais: será que se podem apaixonar só pela personalidade e intelecto, sem o aspeto físico contar para a equação?

Nesta espécie de “The Voice Das Hormonas”, cada casal só se pode ver depois de ficar noivo. E permitam-me um ligeiro spoiler para vos contar que há pessoas a ficarem noivas ao quinto dia, chorando copiosamente com o pedido. Alguns não encaixam com ninguém e ficam pelo caminho – são talvez os mais sortudos, suspeito. Os restantes passam à segunda fase: encontrarem-se e ir morar juntos. Os que sobrevivem ao impacto da vidinha passam à fase três, a do casamento. E deixem-se ser outra vez reveladora e divulgar que há só cinco casais que lá chegam e mesmo assim há quem seja abandonado no altar. Afinal, tudo tem de ter as características de uma boa telenovela, apimentada por este voyeurismo da suposta realidade.

[o trailer de “Love is Blind”:]

“Love Is Blind” tem dez episódios, de uma hora cada, mais um especial de reunião dos ex-participantes para contarem o que mudou na sua vida um ano depois. Apesar de serem pouco presentes na maioria dos episódios, o programa tem uma dupla de apresentadores, também eles um casal. Tratam-se de Nick e Vanessa Lachey. Ele é um ex-membro da boyband 98 Degrees e protagonista de um dos primeiros reality shows do género, o sucesso da MTV “Newlyweds” (nos idos de 2003, quando casou com a primeira mulher, a cantora Jessica Simpson). Ela é uma ex-apresentadora da MTV que, reza a lenda, se apaixonou por ele por o entrevistar várias vezes quando eram parceiros de canal. Uma história de amor cor de rosa, a ver se inspira os concorrentes de “Love Is Blind”.

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Na verdade, todos eles recusariam esta etiqueta de “concorrentes”. O programa não se apresenta como um reality show, mas sim como (pausa para revirarmos todos os olhos) “uma experiência”. E se reconhece esta expressão por ser repetida até à náusea pela cobaias de “Casados À Primeira Vista”, não se admire. A produtora e criadora da ideia original, a Kinetic Content, é a mesma. Os tiques identificáveis não se ficam por aqui, indo dos planos ao som de baladas foleiras que nem na RFM passam até às declarações para a câmara limadas até ao pormenor. Afinal, não há grande originalidade aqui.

Os intervenientes tentam condensar alguns estereótipos (a desbocada, a ex-gorda, o magoado pela antiga namorada, o virgem, até o bissexual), mas a verdade é que acabam todos por parecer e soar muito semelhantes. Volta e meia tive genuína dificuldade em lembrar-me de quem era quem. As profissões nunca eram banais, eram sempre coisas como cientista, ex mecânica de tanques ou dançarina profissional de basquetebol – mas os intervenientes tresandam a banalidade, sim. Tenta-se apimentar com a ocasional escandalosa relação inter-racial (estamos em 2020, malta), com as menções constantes a um catolicismo exacerbado (“foi Deus que me colocou aqui para te conhecer” deve ser das frases mais usadas em todas as suas variantes) e com a inquietação de um amor com uma colossal diferença de idades (na verdade, ele tem 24 e ela tem 34). Mas o que fica são é a imagem de eles todos com barbas aparadas de igual modo e elas todas com pestanas falsas que parecem crinas agrafadas ao sobrolho.  Os apresentadores saem-se com um “estamos a dar-vos a melhor hipótese de sucesso vitalício no amor” e eu saio-me com algum refluxo gástrico.

[uma coletânea de momentos estranhos em “Love is Blind”:]

Antes que eu pareça só do contra: sou uma grande fã do canal TLC e de toda a sua deplorável programação, dos concursos de beleza com crianças de cinco anos aos esquemas de quem fica noivo só para ter um green card. Mas não percebo a loucura generalizada com “Love Is Blind”, que tem sido top dos conteúdos mais vistos na Netfllix desde que estreou um pouco por todo o mundo, Portugal incluído. Tem alguma graça na parte das Cápsulas (a única vagamente diferenciadora) e vale a pena ver a lavagem de roupa suja do episódio de reunião. O resto, não é assim tão arrebatador. Porém, longe de mim querer reprovar quem precise, sobretudo neste momento, desta pastilha elástica para o cérebro. Estamos juntos, bingewatch away.

Uma das críticas mais recorrentes ao formato é óbvia pouco depois de começarmos a ver: eles e elas são todos uns nacos. Podemos organizar um pódio dos mais jeitosos, mas não há ali ninguém que não seja claramente acima da média. E são todos mais ou menos das mesmas idades (a mais velha é a supracitada mulher com uns anciãos 34 anos). Poderá um programa destes agitar a bandeira de “o que conta é o interior” se, no momento do encontro, nunca há desilusões? Se nunca há uma personalidade cativante dentro de um corpo que não constaria da capa da GQ?

Porém, um artigo da Slate assinado por Daniel Schroeder levanta um ponto interessante: se existissem pessoas com peso a mais neste programa, não se iriam simplesmente transformar-se num símbolo dessa questão e deixarem de ser pessoas validadas como, vá, pessoas? Não iam ser só um objeto que serve para contar determinada história? Schroeder, que se auto-intitula de gordo, considera que se ia entrar numa experiência mais National Geographic, na qual pessoas que nunca passaram por discriminação pela sua aparência iam ter um fascínio simplesmente voyeuristica por quem passa por esse problema. Não ia ser democrático nem pedagógico, ia ser só cruel. O facto de todos os concorrentes serem fisicamente tão parecidos permite focar noutras coisas que não da filosofia do bom aspeto. É navegar sempre em águas calmas.

Os casais que aguentam mesmo juntos até ao fim (querem mesmo saber? São só três) têm de declarar com imensa convicção para a câmara que sim, o amor é mesmo cego. Afinal, ficaram com uma pessoa pela qual se apaixonaram sem saber como era. Mas será mesmo assim? A socióloga Danielle J. Lindemann explicou à CNN (sim, o sucesso de “Love Is Blind” é tão grande que vai das análises sérias na CNN aos sketches humorísticos no Saturday Night Live) que tal é simplesmente impossível, mesmo sem se estar a ver o pretendente: “há pistas não visuais sobre a raça de uma pessoa e os concorrentes que não se veem discutem tópicos como etnicidade ou religião”.

“Love Is Blind” não é a revolução que nos querem fazer acreditar e é até um pouco dejá vú. Mas se o Big Brother 2020 foi adiado e precisam mesmo deste escape, avancem. Falemos mal da Jessica em conjunto.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa