Os carros que chegam à aldeia chamam a atenção pela matrícula diferente. As casas que costumam ter a luz apagada têm agora sinais da presença de moradores e janelas abertas. Por altura da Páscoa, é habitual chegarem portugueses de diferentes pontos da Europa, mas, este ano, o fluxo começou mais cedo. E tem tudo a ver com o surto da Covid-19. Vários municípios do país dão conta da chegada de centenas a milhares de portugueses vindos do estrangeiro — e, com eles, de várias violações da quarentena obrigatória a que estão obrigados. O presidente da câmara municipal de Gouveia diz mesmo que o município está a ser “invadido”. Aí, tal como em vários outros concelhos, o recurso a denunciantes entre a população tem sido a solução encontrada para controlar quem vem de fora.

Na segunda-feira, a DGS decidiu que todos os portugueses e estrangeiros que entrem em Portugal têm de ficar em isolamento durante 14 dias. A medida, obrigatória, acabou por ser suspensa temporariamente — para ser corrigida — mas voltará a entrar em vigor ainda esta quinta-feira. E foi ao abrigo dessa regra que quatro emigrantes portugueses foram detidos na quarta-feira, em Chaves, por violarem a ordem de isolamento obrigatório.

O Jornal de Notícias conta que são dois empresários e dois funcionários da área da construção civil, que trabalham em França e na Bélgica. No regresso a Portugal, terão decidido isolar-se numa casa, em Ribeira de Pena, para protegerem as famílias. Depois de receberem uma visita da GNR, que os informou sobre a obrigação de permanecerem na residência, acabaram por decidir sair — todos — para irem a Chaves buscar comida, já que os próprios militares lhes teriam dito que não havia forma de receber bens alimentares através de empresas de entregas, como a Glovo ou a UberEats.

À Agência Lusa, um dos patrões garantiu que apenas um saiu do carro para ir ao supermercado, “devidamente protegido com máscara, luvas e gel desinfetante”, mas acabaram por ser detidos pelo crime de desobediência. Presentes ao Tribunal Judicial de Chaves esta quinta-feira, foram condenados a multas entre os 1.800 euros (para cada um dos funcionários) e seis mil euros (para cada um dos empresários).

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O exemplo pode repetir-se. E muito municípios não esperaram pela medida da DGS para procurarem alternativas para lidar com os emigrantes que vêm de França, Reino Unido ou Suíça — ou porque os empregos foram suspensos, ou porque já tinham férias marcadas — e que não cumprem as regras de contenção da Covid-19. Em situações mais complicadas, alguns municípios, como Valpaços, pediram ajuda às populações locais para identificar quem vem de fora.

Pedimos às pessoas que fossem os próprios vizinhos que nos fizessem chegar [informação sobre] carros que passam e são da Suíça ou de França e que nos chamam a atenção. Dão-nos a morada exata de onde moram”, explica o presidente da câmara de Valpaços, Amílcar Castro de Almeida.

A situação repete-se em Bragança, com Hernâni Dias, presidente do executivo, a afirmar que “cada membro acaba por ser um fiscal da sua aldeia”. “Eles próprios acabam por fazer denúncias.”

Os autarcas recordam que, na maior parte dos casos, são concelhos compostos por aldeias dispersas, com pouca população e onde as relações chegam a ser quase familiares. Talvez por isso, até os próprios presidentes de junta foram chamados a participar na procura de emigrantes. Nesta semana, à Lusa, o presidente da câmara de Valpaços dizia ter mobilizado presidentes de junta e cidadãos residentes — e que, em dois dias, tinham conseguido identificar 150 pessoas que regressaram ao município. Ao Observador, explicou que o número já ultrapassou as 300.

“O presidente da junta vê se a casa está habitada ou não. Há sempre uma pessoa ou outra que chama a atenção. Há essa articulação diária, se nós virmos movimentações estranhas e diferentes. Nas freguesias é mais fácil. Temos localidades com 40 ou 50 pessoas e é quase uma relação familiar que ali está”, explica.

Quando chega alguma denúncia, a articulação é feita com a PSP ou GNR, que recebem notificações das autarquias e das juntas de freguesia para intervir, quando necessário.

Emigrantes vindos de França “não têm reagido bem”

“Tem havido alguns desalinhados desta orientação que têm provocado alguns problemas”, afirma o presidente da Câmara de Bragança, que corrobora uma situação que se repete em Valpaços ou Gouveia. Amílcar Castro de Almeida, presidente da Câmara de Valpaços, conta que chegou a receber pessoas que utilizavam autorizações francesas para deslocação interna como justificação para poderem andar livremente em Portugal. E a lista de situações que tiveram de ser travadas não fica por aqui: “As pessoas continuavam a estar juntas como se estivéssemos em dias de verão, há cafés que furaram ordens de encerramento e grupos [de emigrantes] em amena cavaqueira. Tivemos de chamar a GNR para intervir nessas situações”, continua.

Para o autarca, a presença da GNR contribuiu para as que as pessoas passassem a sentir que “isto não é para brincadeiras”. Ao Observador, a GNR recusou pronunciar-se sobre a sua forma de atuação nos municípios do interior, remetendo para a existência de “medidas anunciadas para quarentena de migrantes”. Sem resposta das autoridades, são os próprios autarcas que ajudam a entender o papel da GNR nesta altura: não há controlos fixos à entrada das aldeias — pelo menos das que não estão com cordão sanitário —, mas, como no caso de Gouveia, há patrulhamento e, “quando há situações de excesso, há intervenção”. “Normalmente, não voltamos a ter incumprimento por parte das pessoas”, diz Luís Marques, presidente da Câmara Municipal de Gouveia.

O líder do executivo municipal falava ao Observador dos problemas maiores que tem tido com os portugueses vindos de França, que “não têm reagido bem”.

Vieram na perspetiva de que as coisas estavam mais calmas e que podiam estar à vontade”, diz.

É esta sensação que as autoridades têm procurado evitar que os emigrantes sintam quando estão na rua. Por isso, em Gouveia, por exemplo, há maior patrulhamento em momentos de maior movimento.

Em Valpaços, o presidente da câmara explica ao Observador que as autoridades fazem rondas pelas aldeias, “veem os carros com origem estrangeira” e sinalizam-nos para maior acompanhamento. A articulação entre a junta de freguesia e a GNR é evidente:

Sabemos quem adotou comportamentos de maior risco. […] Posso dar conta de pessoas que estavam a fazer o seu dia-a-dia normal e, depois de recebermos o aviso da junta, a GNR deslocou-se ao local e pediu à pessoa que se remetesse ao isolamento”, conta Amílcar Castro de Almeida.

Há ainda uma aposta na sensibilização de residentes e não residentes: pelas aldeias, há carros da Guarda Nacional Republicana ou das juntas de freguesia a circularem com altifalantes, fazendo ouvir a mensagem de que é necessário ficar em casa.

Ordem nacional pode ser decisiva

A maior esperança dos autarcas está na pressão feita pela norma que entrou em vigor na segunda-feira, segundo a qual qualquer pessoa que entrar no país, de avião ou de carro, português ou estrangeiro, teria de cumprir uma quarentena de 14 dias. O problema é que essa norma, pouco depois de ser aplicada, foi revogada temporariamente.

Na conferência de imprensa diária desta quinta-feira, confrontada com essa questão, a diretora-geral da Saúde confirmou que tinha sido necessário retirar essa regra, para fazer correções. Segundo Graça Freitas, foi preciso uniformizar o cumprimento da norma a nível nacional, para que as autoridades locais não agissem de formas diferentes. Assim, a revogação duraria apenas “algumas horas” — as novas regras seriam definidas logo depois das declarações perante os jornalistas.

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O que acontece nesse espaço de tempo, com um vazio na lei? A decisão pode ser tomada caso a caso pelas autoridades regionais e locais de saúde. Se determinarem que determinadas pessoas ou fluxos de pessoas devem ficar em quarentena, têm autonomia para o decidir.

Ainda assim, Graça Freitas disse que é um “risco controlado”, confiando que o isolamento voluntário será facilmente cumprido, ao contrário do que mostra a experiência dos autarcas ouvidos pelo Observador.