Que não haja a mais pequena das dúvidas: comida e solidariedade são duas coisas que andam de mão dada. Do simples ato de juntar água à sopa para se servirem mais uma bocas a operações de escala maior em que se alimentam os mais necessitados, comer será sempre um ato de partilha e isso, em tempos de crise, torna-se ainda mais importante.

Lá fora, o cozinheiro espanhol/norte-americano José Andrés foi talvez um dos que mais cedo mostrou o papel importante que a comida pode ter em situações de crise. Veja-se o impacto que a sua World Central Kitchen teve em situações de catástrofe natural nos EUA como no rescaldo da passagem do furacão María, em Puerto Rico, ou o caso mais recente do cruzeiro Grand Princess, que por suspeitas de infeção com o novo coronavírus ninguém o queria permitir atracar. Os exemplos deste espírito surgem também em Portugal, numa lista que tem tudo para não parar de crescer.

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Alimentar a Saúde no Algarve

“A minha mulher é médica, quando isto começou, ainda antes do Estado de Emergência, já se previa que esta situação que se vive hoje fosse acontecer”, explica ao Observador o chef Rui Silvestre, responsável pelo restaurante Vistas, em Vila Nova de Cacela, que no final de 2019 ganhou a sua primeira estrela Michelin. Pelo telefone, o cozinheiro vai explicando como surgiu o seu projeto “Alimentar a Saúde”, um dos maiores a nascer desta crise pandémica. “Muitos profissionais de saúde levam a sua comida de casa porque não querem comer em refeitórios”, conta, e na situação atual, por exemplo, não devem passar tempo em casa com as famílias (para minimizar hipóteses de contágio) ou viver muito longe dos sítios onde trabalham, Logo, deixam de ter capacidade — nem que seja mental e física — para preparar as suas refeições. Era preciso ajudar e foi isso que Rui percebeu.

“Comecei a falar com a minha equipa sobre a possibilidade de criarmos algo deste género, em que damos refeições a quem mais precisa. Queria ver o que eles achavam…” — a resposta não podia ter sido mais positiva. Contactaram a Makro para esta apoiar com ingredientes e o Banco Alimentar para ajudar com a coordenação da distribuição e foi assim que há menos de uma semana começaram a enviar as primeiras refeições.

“As coisas evoluíram muito rápido”, conta o cozinheiro. Começaram por entrar em contacto com o Hospital de Faro — “Quisemos começar pelos hospitais de referência e no Algarve é só esse” –, a oferecer os seus serviços, e estabeleceram com eles a primeira cadeia de apoio. Silvestre afirma que no início começaram por usar as cozinhas do seu restaurante mas em pouco temo perceberam que ficava demasiado fora de mão e isso prejudicava. “Um contacto na Cruz Vermelha de Tavira entrou em contacto connosco e eles ofereceram-nos as suas instalações”, relata.

A organização, que Rui Silvestre diz ter ficado com muito poucas doações e voluntários nos últimos tempos, passou a ser a central do projeto — pelo menos na zona do Algarve, já que entretanto há quem o queira implementar no Ribatejo (o chef Rodrigo Castelo, da Taberna Ó’Balcão, mais concretamente) e quem já o faça também no Porto (os chefs Vasco Coelho Santos, do Euskalduna, e Marco Gomes, do Oficina). Em menos de nada o apoio que Rui Silvestre e Noélia Jerónimo (do restaurante Noélia & Jerónimo, em Cabanas, que entretanto também se juntou à iniciativa) davam aos profissionais de saúde começou a representar “uns 10%” do trabalho que fazem.

Rui Silvestre acertou com a sua equipa todos os pormenores desta iniciativa. D.R.

Ao perceber que o Banco Alimentar, naquela região, passou a receber “uns 400 pedidos de ajuda novos todos os dias”, à conta da paralisação do país, começou a alimentar muito mais bocas. “Estamos a trabalhar com crianças abandonadas, por exemplo, mas também com algumas famílias carenciadas desta zona do Algarve. Só entre Tavira e Olhão há umas 150 ou 200 famílias necessitadas”, conta o cozinheiro.

Neste momento estão a preparar menus completos diariamente, onde “todos os dias há uma sopa diferente; prato vegetariano, de carne ou peixe e uma sobremesa”. Pelo cardápio já passaram iguarias como massadas de peixe, pastas com molho de limão, salmão e espinafres ou estufado de moelas. Também com ajuda da Rede de Emergência Alimentar vão conseguindo levar estes pratos a mais e mais pessoas. Este Alimentar a Saúde parece estar a ter um sucesso tão grande que o chef diz ter nascido em França, esta semana, um projeto muito semelhante. Quando a situação acabar querem continuar a fazer coisas — “Queremos continuar a colaborar, dentro do possível. Estou a aperceber-me de uma realidade nova, quando vemos que há mesmo crianças e famílias a passar fome, o chip muda” — mas por enquanto, para a onda de trabalho e solidariedade não abrandar, a grande necessidade passa por garantir mais apoios e doações.

No Porto

“Um amigo médico ligou-me a dizer que o São João podia estar a precisar de comida para o pessoal dos Cuidados Intensivos e Intermédios e quis logo encontrar uma forma de ajudar”, explica o chef Vasco Coelho Santos, responsável pelos portuenses Euskalduna e Semea. Perante este cenário, o cozinheiro decidiu lançar o desafio entre um grupo de amigos e colegas e tudo começou a encaminhar-se. “O Rui [Silvestre] disse que estava prestes a lançar o seu projeto e que precisávamos de ver apoios”, conta.

O chef Vasco Coelho Santos faz parte do esforço de vários cozinheiros e restaurantes no Porto que estão a alimentar profissionais de saúde. D.R.

Enquanto os pormenores iam sendo acertados junto do dito hospital, Vasco não baixou os braços e e encontrou outra forma de também ajudar — através do Banco Alimentar. “Houve uma doação de 300kg de peixe feita pela Makro e decidi agilizar as coisas. Falei com o Marco Gomes (não tinha espaço no meu restaurante e pedi ajuda para usar o dele) e começámos a trabalhar”, explica. Em pouco tempo, adianta, imensos colegas quiseram juntar-se ao esforço e contribuir com trabalho, algo que teve de ser controlado “para evitar contactos desnecessários” e protegerem-se a eles e às famílias de todos. Ficaram só com uma equipa de seis pessoas e cozinharam quatro dias seguidos para o Banco Alimentar, para depois este distribuir as refeições por quem mais delas necessitava.

Entretanto, o ok final do São João já foi dado e agora todos os dias são servidos 50 almoços e 50 jantares ao pessoal desta unidade hospitalar. A equipa de apoio também cresceu: “Já conseguimos o apoio do Continente. Somos um total de 11 [Semea, Euskalduna, Oficina, Atrevo, os  do grupo Cruel e os da Adega São Nicolau bem como o Odd, o Mito e o Boa Bao] e a cada dia há um desses restaurantes a fazer os pratos.” Ao mesmo tempo, o trabalho com o Banco Alimentar também continua.

Antevendo um eventual cenário menos positivo a curto prazo, Vasco explica que já terem estas sinergias montadas é uma garante de que quando for ainda mais preciso, ele e os seus colegas estarão prontos para (continuar) a ajudar.

É um Restaurante (que ajuda)

Foi no passado mês de outubro de 2019 que Lisboa ficou a conhecer um novo restaurante totalmente diferente de todos os que existiam nessa região. Com um nome que não deixa margem para dúvidas, o É Um Restaurante serviria refeições, como seria de esperar, mas servia também esperança: nele só trabalhavam pessoas em situação de sem abrigo que, com a ajuda da associação de apoio social CRESCER (os impulsionadores do projeto), ganhavam neste espaço a hipótese de serem reintegrados na sociedade, não só ganhando independência como conseguindo também, aos poucos, ser reinseridos no mercado do trabalho.

Depois de uns primeiros tempos de sucesso, a chegada da pandemia fez com que se carregasse no travão e o É Um Restaurante, como toda a indústria da restauração, parou. O espaço fechou portas, por motivos de preservação da saúde pública, no início de Março mas agora está de volta.

O chef Nuno Bergonse faz parte do projeto “É um Restaurante”, que está a alimentar entre 150 a 200 sem abrigo todos os dias. Diogo Lopes/Observador

“Quisemos reabrir o restaurante porque a associação tem consciência daquilo que se passa na cidade de Lisboa, onde ela incide mais especificamente, e sabemos que neste momento há pessoas que nem têm casa para fazer quarentena”, conta ao Observador o chef Nuno Bergonse, um dos envolvidos neste É um Restaurante que está agora, novamente, em pleno funcionamento: não só para serviço take-away mas também, principalmente, para alimentar a comunidade sem abrigo da capital. “Mesmo que a filosofia da CRESCER não seja dar comida — preferimos ensinar a pescar e não dar logo o peixe –, não conseguimos ficar indiferentes a esta situação”, continua.

Nuno Bergonse: “Há pessoas que nem têm casa para quarentena”

Ora o que fizeram então foi criar aquilo que Bergonse diz ser quase um paradoxo: “Temos os nossos formandos, pessoas que tiveram na rua, e são elas que nos estão a ajudar a alimentar outras pessoas que estão na rua”. Nuno explica que quando voltaram a comunicar com o seu staff a pedir que voltassem não sabiam muito bem como é que eles reagiriam ao apelo. A reação foi surpreendente: “Quiseram logo voltar de mangas arregaçadas e explicaram que tinham uma vantagem: sabiam exatamente onde estavam as pessoas que ainda andavam na rua, o que elas gostavam mais, quais os casos mais complicados… Isso é maravilhoso.”

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Isto materializa-se então numa feijoada diária que é servida “a 150 a 200 pessoas todos os dias”. Porquê este prato? Porque é relativamente fácil de fazer utilizando produtos menos perecíveis e também é uma iguaria “de conforto”. “Produtos frescos e bons têm um custo e nós infelizmente não estamos a conseguir ter os apoios que gostávamos de ter”, explica o cozinheiro. Apesar de tudo Bergonse diz que o É Um Restaurante não se quer prender só à feijoada mas sim fazer outras coisas, assim que os apoios o permitam: “Nós só queremos é alimentar as pessoas”.

“Nem todos os heróis usam capas”

É em casos de crise que as pessoas mais têm tendência a se unirem e a Food For Heroes é um exemplo disso. No total, seis restaurantes (Aruki, Chickinho, Home Sweet Sushi, Sushi at Home, Pasta Non Basta e The Burger Guy) lisboetas decidiram unir-se por um motivo maior: ajudar os profissionais de saúde que têm sido incansáveis no combate à Covid-19.

“Quando rebentou toda esta confusão da Covid-19, tanto eu como outra malta nova que tem negócios na área da restauração — conhecia alguns, outros nem por isso — começámos a trocar ideias sobre como podíamos adaptar os nossos negócios”, explica ao Observador Frederico Seixas, um dos responsáveis pelo Grupo Non Basta. O mesmo empresário, logo de seguida, esclarece que assim que encontraram um molde minimamente viável de tentar manter os seus restaurantes vivos, a prioridade mudou:”Depois pensámos:’ E agora como podemos ajudar quem mais precisa'”. Rapidamente a resposta tornou-se óbvia: “Distribuindo refeições às pessoas na linha da frente”.

O projeto Food For Heroes tem entregue refeições todos os dias a profissionais de saúde em Lisboa. D.R.

Reuniram ideias, definiram estratégias e assim nasceu este Food for Heroes, iniciativa que consiste na entrega gratuita de refeições a médicos, enfermeiros e outros profissionais ligados à área da saúde. Como tudo funciona? “Temos um e-mail [o foodforheroespt@gmail.com] e convidamos o pessoal dos hospitais a usá-lo para nos dizer o que precisam de comida”, explica Frederico. Ou seja, tanto enfermeiros e médicos como chefes de turno ou diretores podem contactar o a iniciativa por aqui, apresentar as suas necessidades e em 48h, “no máximo”, têm uma resposta.

A ideia é criar uma espécie de rede de apoio para este tipo de profissionais para que estes possam, gratuitamente — “Eles não têm qualquer custo, é tudo suportado pelas marcas” — , receber iguarias como pizzas, massas, sushi, frango ou hambúrgueres (não há pedidos à carta). “Nas primeiras 24 horas tivemos uns 500 pedidos, ficamos contentes que tenha havido uma grande adesão”, acrescenta Frederico. Hospitais como Santa Maria, o São José, o Amadora Sintra e até o Beatriz Ângelo, em Loures, já usaram destes serviços mas o grupo não se quer ficar por aqui: “Por enquanto estamos limitados a 60 refeições por dia mas a ideia seria aumentar. Estamos abertos a novos parceiros e até já iniciámos contacto com restaurantes do Porto”, conta o empresário.

A própria extensão dos seus serviços a outras pessoas para além do pessoal médico também é algo equacionam, mas tudo a seu tempo. “Acima de tudo, acreditamos no que estamos a fazer e nas pessoas que estamos a apoiar”, remata.