Cuidados especiais com a higiene, sessões de fisioterapia canceladas, trabalhos em suspenso que dão impulso a novos livros ou a teses – o retrato de um isolamento social ditado pela Covid-19 que começou mais cedo para pessoas com deficiência.

Rui Machado, 36 anos, residente em Ermesinde, concelho de Valongo, está desde o dia 10 de março em casa. O estado de emergência foi decretado nove dias depois, mas a decisão já tinha sido tomada porque o técnico da APPACDM do Porto tem uma doença neuromuscular, pelo que pertence a um grupo de risco que obrigou a família a impor muitas regras em casa.

Só o meu pai sai para fazer compras. Sai com proteção e quando chega abandona a roupa à entrada e vai tomar banho. Tudo o que entra em casa é higienizado”, conta Rui Machado à agência Lusa.

Autor de cinco romances, o primeiro deles publicado em 2014 com o nome “Finalmente Mar”, aproveita este período para fazer a revisão de um novo livro e abusa das chamadas telefónicas e videochamadas que, diz, “diminuem as saudades, mas pouco”.

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Para o Rui, os chamados “passeios higiénicos” são feitos dentro de quatro paredes ou através das redes sociais onde tem publicado diariamente o “Diário de um mamífero em isolamento”, espécie de síntese humorística e irónica sobre o seu dia-a-dia. Já tem seguidores e leitores que o chamam à atenção se demora a fazer o post diário.

Vive numa espécie de bolha onde é dada especial atenção à higienização das superfícies e o arejamento dos espaços é feito com frequência. Resolveu aumentar os períodos de ventilação, tomar vitaminas e, acrescenta, “tentar comer mais e melhor para estar mais forte na possibilidade de vir a enfrentar uma infeção“.

Cuidados semelhantes tem José Henrique Rocha, 37 anos, mediador socioeducativo e formador sem trabalho atualmente. Tem paralisia cerebral tetraespástica e está em casa desde fevereiro quando quase não se falava de Covid-19 em Portugal, mas o vírus já era conhecido lá fora e já atormentava quem sabe que precisa de cautelas acrescidas.

Divide o espaço, em Santa Maria da Feira, com a mãe, dois irmãos mais novos e um avô materno de 84 anos. As tarefas que incluem ir à rua são exclusivas da mãe.

“Tenho mais cuidado com a higienização das mãos e dos equipamentos eletrónicos. Tenho uma assistente pessoal que presta apoio – cuidados de higiene, refeições, etc. – e nas suas folgas, a minha mãe é a minha cuidadora. Temos especial atenção na minha higienização, nomeadamente com a utilização de máscara e luvas“, conta José Rocha à Lusa, apontando – ao contrário de Rui Machado, que sente falta da liberdade de ir à rua – que não está a abdicar de algo especial, ainda que reconheça que “o convívio com amigos é muito importante para o equilíbrio emocional“.

Opinião semelhante tem Sofia Costa, 30 anos, estudante na ESAD, em Matosinhos, onde habitualmente vive com a irmã gémea. Está a cumprir isolamento social em Penafiel porque ouviu falar dos primeiros casos e da situação de Felgueiras quando estava a passar o fim de semana com os pais, ambos professores.

“Ainda não tinham encerrado as escolas e os meus pais tinham estado expostos. Eu tinha planeado regressar a Matosinhos, mas achei que não era sensato andar de um lado para o outro. Comecei a quarentena por consciência cívica há cerca de 20 dias e agora cumpro-a para me defender a mim e aos outros”, referiu à Lusa.

Sofia Costa tem paralisia cerebral. Andou com muletas até aos 18 anos e atualmente socorre-se de uma cadeira de rodas para grandes distâncias, agora confinadas às divisões de casa, locais que tenta percorrer com regularidade para “contrariar a apatia” e “manter dinâmicas familiares”, conforme lhe sugeriu a psicóloga que agora a segue remotamente. Quanto às sessões de fisioterapia, cancelou-as e conta com o apoio da mãe para fazer alguns exercícios.

O confinamento a um espaço não é uma realidade nova para Sofia que, na sequência de um tratamento, ficou com uma perna paralisada durante cerca de um ano.

“Tive ataques de pânico. E agora que já tinha contrariado esse padrão, já estava a sair, o que considero que tem sido mais desafiante é voltar a estar em casa sem ter ataques de pânico. Está a correr bem, mas falta o sair”, conta a fundadora do projeto “Adaptar Portugal”, que se traduz num espaço de sensibilização para que existam acessibilidades em espaços públicos, privados e nas ruas.

A Sofia tinha palestras e visitas a escolas agendadas para falar do seu projeto. Foram canceladas. Aproveita agora o tempo para escrever a tese, fazer meditação e “ajudar os outros”, investindo num projeto que surgiu em tempo de pandemia, o “Emanamos Amor”, grupo que criou com colegas e que tem como objetivo “quebrar uma onda de desânimo”.

Voltando ao Rui, que ia todos os dias para o trabalho em transportes públicos e recebia com frequência a visita dos sobrinhos e de amigos, o seu trabalho não ficou em suspenso, porque consegue trabalhar de casa, mas a vida social sim. “Teletrabalho só numa situação limite como esta. Sinto muita falta da liberdade de ter vontade de sair e simplesmente sair“, desabafa.

Já o José aproveita para mandar currículos e lutar por uma “verdadeira inclusão social”, uma “presença social e laboral na sociedade de forma plena”, algo que diz tardar no país tal como tarda a vacina para o novo coronavírus, responsável pela pandemia da Covid-19 que já infetou mais de 870 mil pessoas em todo o mundo, das quais morreram cerca de 44 mil.

De acordo com dados de quarta-feira da Direção-Geral da Saúde, em Portugal registaram-se 187 mortes, mais 27 do que na véspera (+16,9%), e 8.251 casos de infeções confirmadas, o que representa um aumento de 808 em relação a terça-feira (+10,9%).