A pandemia de Covid-19 empurrou grande parte da população para casa. Muitos deixaram de trabalhar e a escola passou a estar à distância. No Bairro da Cruz Vermelha, na Alta de Lisboa, esta é uma equação difícil de resolver.

Numa zona de habitação municipal com carências prementes, que tem entre 10 mil e 12 mil habitantes, o confinamento em casa não significa necessariamente teletrabalho ou aulas à distância, já que muitas famílias não têm internet e computador em casa.

Uns perderam o emprego, outros não podem trabalhar porque têm de ficar a cuidar dos pais ou dos filhos – uma “situação crítica” que tem feito aumentar os pedidos de ajuda, conta o presidente da associação de moradores, Fernando Baião.

Habitualmente a Associação de Moradores do Bairro da Cruz Vermelha, com o apoio da Refood, distribuía alimentação a cerca de 60 pessoas, ajuda que já se alargou para praticamente o dobro dos beneficiários, agora com a ajuda da Câmara de Lisboa, que distribui os alimentos na pista Moniz Pereira, na Ameixoeira. É aqui que a associação os recolhe para distribuir à população às segundas e às quintas.

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“Conseguimos atingir aqui um objetivo de 120/130 pessoas. Se houvesse mais, mais teríamos distribuído”, realça Fernando Baião, em declarações à agência Lusa.

É um dia de semana. O sol brilha contrastando com o cinzento de um país que acaba de ver renovado o estado de emergência por mais duas semanas devido ao temido e invisível inimigo.

Nas ruas do bairro, erguido nos anos 60 na sequência de uma campanha de angariação de fundos protagonizada por seis abastadas Marias, há crianças a brincar, ainda que poucas, alguns jovens convivem em pequenos grupos e os idosos estão sobretudo em casa, por vezes à janela em conversas entre vizinhos. As mercearias estão abertas, mas a clientela é esporádica.

Fernando Baião considera que, “por muito que se possa dizer”, as ordens das autoridades têm sido “minimamente respeitadas” e sublinha que, principalmente à noite, as pessoas “têm-se retraído em sair à rua”, havendo “muito menos gente do que numa altura normal”.

Ana Santos, 35 anos, mãe de duas crianças, conta à Lusa que teve de fechar o seu café, implicando uma perda de rendimentos que a deixa na ‘corda bamba’.

Garante que nunca faltou sustento nem comida à mesa, mas teme o futuro, até porque mesmo sem faturar terá de continuar a pagar a renda à senhoria.

“Até agora sempre consegui, eu e o meu marido, mas vamos ver o que é que vai dar daqui para a frente. […] O pouco que tínhamos guardado está a dar para a gente comer e não faltar nada, mas vai começar a apertar. E não falo só por mim, falo por toda a gente, isto está a ficar muito complicado”, afirma.

A família de Ana, à semelhança de muitas outras, também não tem acesso a um computador em casa, uma ferramenta indispensável para que a filha, a frequentar o 5.º ano, cumpra o ensino à distância.

Deixa, por isso, um apelo ao presidente da Junta de Freguesia do Lumiar para a disponibilização de computadores, lamentando que a filha não esteja a conseguir acompanhar os trabalhos de casa, ainda que continue a estudar pelos livros que tem.

“Isto vai contar para nota e há muitas crianças que não podem fazer porque não têm. Não têm computadores, não têm internet, não têm nada”, critica.

Também Ana Ceia, de 33 anos, não tem computador, apesar de ter conseguido imprimir as fichas da filha através de uma colega, e relata o quão difícil é ter as crianças em casa há quatro semanas.

“Os meus filhos choram, principalmente a minha filha, que a minha filha adora escola. E ela chora que quer ir para a escola, que quer ver os amigos, que está presa em casa”, conta.

“Então o meu filho de 5 anos está endiabrado. Ele chora, ele quer ir à rua, quer jogar à bola, ele sente-se preso. Estão a bater mal, como eu também estou a bater mal em casa”, confidencia, acrescentando que os miúdos já deram uns chutos na bola dentro de casa, tendo partido “várias coisas”. Contudo, acrescentou, “não podem estar só sentados no sofá”.

Os apelos para manter a higiene, lavar as mãos com regularidade e os avisos de que ficar em casa é o mais seguro neste momento não se aplicam a todos os moradores do Bairro da Cruz Vermelha – nem todos têm as condições mínimas para viver.

Isamara Batista vive numa casa que ocupou ilegalmente com os dois filhos, sem acesso a água canalizada, um problema que muda de dimensão com o cenário pandémico.

“É horrível. Estou-me a matar completamente. Em vez de ir buscar 10 garrafões, vou buscar mais 10. Ou seja, 20 garrafões por dia. Estou sempre a lavar os meus filhos e mesmo assim estou a chegar à exaustão. Eu consigo mantê-los em higiene mesmo como deve ser, só que a mim não”, conta, com mágoa no olhar.

Pelas ruas do bairro encontra-se também Luís, um jovem de 25 anos que está a viver com o seu cão numa pequena barraca improvisada, coberta com roupa e rodeada de lixo, junto a um campo de futebol sem desportistas.

Nas ruas desde os 11 anos, já dormiu em vários pontos da cidade, mas é no bairro que gosta de estar. Admite que já lhe foi proposto ir para um abrigo, mas recusa-se a ir justificando que “é muita gente lá e é mais fácil transmitir doenças lá dentro”.

“Está bem que aqui posso apanhar uma doença qualquer, mas, epá, prefiro estar aqui do que estar lá”, reforça.

Luís, que vive ao sabor da bondade da vizinhança, dirige-se, entretanto, para o pé da janela de um rés-do-chão, de onde recebe um café e um pacotinho de açúcar, e cumprimenta um grupo de jovens que convivem na rua.

“Já não consigo estar mais em casa”, comenta um. “Ninguém consegue”, responde outro.

Mais acima, à entrada de um prédio, um casal com mais de 70 anos chega a casa depois de uma rápida ida à farmácia e ao banco.

“Temos estado isolados e sempre com um bocadinho de medo disto tudo. Mas com esperança de que isto vai para frente. De vez em quando tenho de ir ao supermercado, tento ir numa hora em que não há mesmo ninguém, ou poucochinha gente, comprar o necessário”, refere Maria Clotilde da Cunha, de 74 anos, acompanhada do marido, de 81.

O presidente da Associação de Moradores do Bairro da Cruz Vermelha alerta que as rendas municipais podem ser pagas mais tarde, mas lembra que terão de ser pagas na mesma.

“Cada um de nós vai ter de recorrer a um empréstimo para poder minimamente sobreviver. Depois vai aparecer não uma renda, mas uma renda mais um acordo que se possa pagar, um acrescento de 2% ou 3% [para pagar os meses da suspensão da renda]”, sublinha.

O representante teme o ponto a que o país vai chegar: “Vai ter de ser injetado de uma forma ou de outra um perdão, uma quantia muito avolumada, para que as pessoas possam continuar a ter uma vida condigna, se não vamos voltar ao passado”, conclui Fernando Baião.