Há mais de seis décadas, na raia de Espanha, a construção da Barragem do Picote constituiu um marco da arquitetura portuguesa, que aí deu passos decisivos na linguagem modernista. Os jovens João Archer de Carvalho, Rogério Ramos e Nunes de Almeida, todos com menos de 30 anos, formados na então Escola de Belas-Artes do Porto, lançaram-se numa aventura que os estudiosos hoje veem como uma concretização formal e ideológica do Movimento Moderno, acompanhada de uma nova dimensão ética da profissão.

Um novo documentário, que parece focar-se mais na Barragem do Picote, inaugurada em 1958 — sem esquecer que o projeto hidroelétrico em Mirando do Douro, Bragança, incluiu naquela época as Barragens de Miranda (1960) e Bemposta (1964) — dá conta dessa dimensão histórica do empreendimento e procura também captar o lado humano dos operários que ali trabalharam.

O escritor Nuno Costa Santos, de 48 anos, assina o guião e Ricardo Clara Couto, de 43, é o realizador. O documentário intitula-se O Lodo, as Estrelas e os Sábios, é da produtora lisboeta Clara Amarela Filmes. Teve antestreia em dezembro na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e passa esta quinta-feira na RTP2, às 23h10. Nos próximos meses, o filme deverá circular por festivais de cinema de arquitetura. A apresentação em maio na Bienal de Arquitetura de Veneza foi adiada devido ao novo coronavírus e ainda não é certo que aconteça no novo período do certame, de agosto a novembro.

[vídeo promocional do documentário]

Dia 9 | O Lodo, as Estrelas e os Sábios – RTP2

A dura experiência de construir as centrais hidroelétricas do Douro. Um lugar remoto onde a coragem e aventura modernista cumpriram o objetivo de eletrificação do país. ‘O Lodo, as Estrelas e os Sábios’, quinta-feira, dia 9, às 23:10 em estreia na RTP2 #FiqueEmCasa

Posted by RTP2 on Monday, April 6, 2020

O Lodo, as Estrelas e os Sábios tem duração de uma hora e inclui entrevistas com arquitetos, professores, antigos habitantes dos bairros em torno da barragem e com o próprio Archer de Carvalho. A arquiteta e professora Graça Correia Ragazzi e o jovem arquiteto, Francisco Pina Cabral, que à data das filmagens estava a preparar uma tese de mestrado sobre o Picote, guiam o espectador pelo espaço e apresentam explicações teóricas.

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Ao mesmo tempo, o filme é intercalado por segmentos de imagens animadas, com assinatura de Milene Carvalho, sobre as quais a voz off do ator Simon Frankel oferece passagens do livro O Lodo e As Estrelas, do padre Telmo Ferraz. É nestes momentos que o espectador mergulha na realidade dos trabalhadores que construíram a barragem.

Muitos deles eram da região, viviam em casebres ou autênticas grutas nas rochas, sem dinheiro e com filhos para criar. Durante a construção da barragem, tiveram finalmente acesso a casas provisórias fornecidas pela empresa que explorou o empreendimento, a Hidouro – Hidroeléctrica do Douro, e em alguns casos, depois da inauguração ficaram a viver nos bairros ali construídos de propósito para os funcionários do empreendimento. Esse bairros incluíam lojas, igreja, áreas desportivas, mais uma vez com projeto de Archer de Carvalho, Rogério Ramos e Nunes de Almeida, a que a população então se referia como “os sábios”.

Imagens animadas de Milene Carvalho sublinham a vida difícil de alguns operários

O livro que a PIDE apreendeu

“Há um misto de estética, arquitetura e literatura”, resumiu Nuno Costa Santos ao Observador. “Começou por ser um documentário sobre arquitetura, na sequência de outros trabalhos que fizemos juntos, e só depois é que nos apaixonámos pelo livro do padre Telmo. Isso abriu-nos uma curiosidade pela palavra.” Polémico à época, e hoje quase esquecido, o livro chegou a ser apreendido pela PIDE, a polícia política do Estado Novo, pouco depois de publicado, em 1960. Isso mesmo é contado pelo autor no documentário.

“É um livro extremamente valioso no retrato que faz de um lugar remoto de Portugal nos anos 50 e 60”, segundo Nuno Costa Santos. “A pobreza das pessoas, a falta de condições de trabalho, as doenças. O padre teve a coragem de ir tomando notas de tudo isso e depois construiu o livro, que é um tesouro. Não querendo cair no lugar-comum, posso dizer que o livro tem um lado antifascista. Deu voz a pessoas que estavam à margem.”

Parcialmente baseado naquela obra, o guião de O Lodo, as Estrelas e os Sábios foi escrito antes da captação das imagens e das entrevistas, mas também depois disso, já durante na montagem do documentário. “Eu e o Nuno tentamos partir sempre do real e acrescentar mais tarde uma narrativa”, explicou Ricardo Clara Couto. “Para nós, um documentário não faz sentido como sucessão de entrevistas coladas umas a seguir às outras. Esse género existe, tem valor como trabalho jornalístico, mas não é aquilo com que nos identificamos. Tentamos sempre construir uma narrativa e dar-lhe um lado humano”, sublinhou o realizador.

Nos últimos anos, ele e Nuno Costa Santos assinaram juntos outros dois filmes documentais: Ruy Jervis d’Athouguia – Um Moderno por Descobrir (2018) e Cláudio Torres – Arqueologia de uma Vida (2019). Neste momento, preparam a edição de um quarto filme documental juntos: sobre o historiador e crítico José-Augusto França, com término previsto para maio, também com recurso a algumas imagens de animação por fotogramas (com a técnica “stop motion”).