O realizador João Maia soube da morte de Filipe Duarte através de Teresa Amaral, diretora de produção de Variações, o filme que os juntou em 2018. “O Filipe parecia o tipo mais saudável de nós todos, tinha todo o ar de quem viveria até aos 100 anos. Era vegetariano e estava numa forma incrível”, disse João Maia ao Observador, dando assim conta da estupefação perante o desaparecimento do ator, vitimado esta sexta-feira por um ataque cardíaco, aos 46 anos.
Falaram pela última vez há poucas semanas e tinham apalavrado um jantar para junho, com o resto da equipa do filme. “Era extrovertido, tratava toda a gente da mesma maneira e todos gostavam dele”, recordou João Maia, em conversa telefónica na tarde de sexta-feira. “Era ultraprofissional, estava a horas, tinha tudo sabido, ninguém esperava por ele. Era mesmo um tipo fantástico. Sei que ele gostou de trabalhar comigo e com a equipa.”
“Inteligente, com carisma, muito intenso”
João Maia e Filipe Duarte conheceram-se no início dos anos 2000. “Ele fazia muitos trabalhos de locução e era a voz de uma marca de pão que me chamou para realizar um filme publicitário há perto de 20 anos. Eu ia começar a dirigir e ele pediu para fazer uma proposta. Entrou na cabine, fez a locução e foi melhor do que aquilo que eu tinha em mente. Foi à primeira. Fiquei logo com muito boa impressão dele.”
Muitos anos depois, reencontraram-se em Variações, filme sobre a vida do cantor António Variações no fim da década de 70, pouco antes de se tornar cantor profissional. O projeto da vida de João Maia demorou mais de 15 anos até ver a luz do dia. O guião começou a ser escrito em 2003 e as filmagens chegaram a estar marcadas para 2009, mas um desentendimento entre o realizador e a produtora Utopia Filmes, que acabou resolvido em tribunal a favor do primeiro, adiou a concretização. Finalmente, em 2016, com um subsídio do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e um acordo com a NOS Audiovisuais para distribuição, o projeto avançou.
O filme foi produzido por Fernando Vendrell, com rodagem entre junho e agosto de 2018 e estreia a 22 de agosto de 2019. Tornou-se um dos filmes portugueses mais vistos de sempre: quase 279 mil espectadores em sala, dizem os dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). A distribuidora aponta 300 mil espectadores, juntando exibições ainda não incluídas nas contas finais.
[trailer de “Variações”, de João Maia]
Sérgio Praia, no papel principal, faz um António Variações sem excentricidade ou lenda urbana, homem comum à procura do sonho de ser cantor. Filipe Duarte, no papel do cabeleireiro Fernando Ataíde, namorado de Variações que acabou por se tornar apenas amigo, oferece ao filme o homem de olhar maduro. Com eles contracenaram Vitória Guerra e Augusto Madeira. “O Filipe era um tipo inteligente, com carisma, muito intenso, olhava as pessoas nos olhos”, relembrou agora o realizador.
Essencialmente, a história reconstitui acontecimentos reais, quando o futuro autor de “Canção de Engate” voltou a Lisboa depois de um ano e meio a viver em Amesterdão. Foi então que reatou com Ataíde.
“Como se fosse um padre com o incenso”
Filipe Duarte foi uma escolha pessoal do realizador, que em maio de 2018, poucas semanas antes do início da rodagem, o convidou para um almoço numa esplanada dos Olivais, em Lisboa. “Falámos sobre o filme e sobre a vida, e no fim perguntei-lhe se ele queria fazer o filme. Não estava à espera, mas ficou logo muito tocado pela minha confiança. A partir daí, ficámos mesmo próximos. Foi das pessoas com quem mais gostei de trabalhar na vida. Também fiquei amigo da mulher. Ele tem uma criança pequena. A morte dele é uma tragédia”, desabafou João Maia.
Desde logo, o realizador ficou “espantado” com a “generosidade” de Filipe Duarte, por este aceitar um papel secundário. “Mas sem ele o filme não funcionava, ele uma espécie de cola, uma personagem muito importante”, explicou.
Além disso, perante a personagem de Fernando Ataíde, o ator respondeu com uma criatividade fora do comum. “A proposta que ele me apresentou ultrapassava o que eu tinha em mente”, reconheceu João Maia. “Ele tinha uma proposta própria para a relação entre o António Variações e o Fernando Ataíde. Ele e o Sérgio Praia tomaram conta disto. Lembro-me de ter tido uma sensação muito estranha, mas ótima: estava a ver no monitor a cena entre eles os dois, estavam a dizer exatamente aquilo que eu tinha escrito, mas parecia que eu estava a ver de fora, como espectador. Fiquei realmente impressionado. O que ele trouxe foi mais do que eu esperava.”
João Maia recordou um outro momento da rodagem. Numa das cenas finais, que durava seis ou sete minutos e que tinha três linhas de descrição no guião, Filipe Duarte “fez uma coisa que demonstra o que ele era como pessoa e ator”, nas palavras do realizador.
“A cena passa-se quase toda com um fado da Amália, Cansaço, e o assistente de realização diz-me que o Filipe tinha pedido cinco minutos para quando estivéssemos todos prontos. Eu respondi: ‘Com certeza.’ Ele trouxe um gravador dele, pôs o fado a tocar e andou pelo décor todo com o gravador na mão, como se fosse um padre com o incenso. O que é certo é que a equipa ficou num estado de alerta e no fim da cena estava toda a chorar. Devo-lhe muito daquilo em que o filme se tornou.”
Além de Variações, Filipe Duarte entrou nos últimos anos em mais duas longas-metragens: Mosquito, de João Nuno Pinto, que se estreou em sala a 5 de março, e Nothing Ever Happened, de Gonçalo Galvão Teles, em pós-produção e sem data anunciada de estreia.