Tivesse o mundo seguido o plano traçado e aquilo de que estaríamos a falar agora seria decerto do concerto de ontem de Nick Cave, na Altice Arena. De como 16 ou 18 mil entoaram “Into My Arms”, eventualmente nos braços uns dos outros, e se falou de crimes de amor, tentou adiar o céu ou chorou fantasmas demasiado vivos. Falaríamos provavelmente disso. Dessa liturgia sem religião formal dos grandes rituais coletivos da pop, de como nos diluímos deles e, não poucas vezes, reconstruímos. E de ser essa a sua importância – e, portanto, também o tamanho da sombra da sua ausência.
Só que o mundo entrou por um caminho alternativo que, na verdade, não sabemos onde vai dar. E neste plano B não realmente planeado, não houve Nick Cave, não há concertos e braços e abraços tornaram-se os troféus a que aspiramos no final desta corrida. Os grandes cerimoniais da pop não estão cá para nos ajudar a fazer a catarse e, de repente, uma segunda-feira de abril pode ser passada no sofá, a assistir a uma aula de Português via televisão, onde nos recordam que Os Lusíadas estão escritos em oitavas decassilábicas, de rima cruzada perfeita e emparelhada AB-AB-AB-CC. Sim. Estão a ver aqueles planos todos que fizeram em miúdos para quando fossem grandes? Antes tivessem aproveitado para jogar mais ao bate-pé.
Dito isto, e apesar de todas as críticas que se lhe possam apontar: é comovente como o país reagiu depressa e se organizou para tentar, o melhor possível, continuar a educar as nossas crianças e jovens, nos tempos da pandemia e da quarentena. Do governo aos pais, das direções das escolas aos professores, das plataformas tecnológicas (televisão incluída) aos alunos. Ginásios, restaurantes, teatros, bares, hotéis, aviação – tantos setores que ainda não fazem ideia de como sobreviver neste novo e urgente mundo, e já a gigantesca empresa da educação estava em marcha, entre chamadas Zoom e horários herculeamente definidos pelos pais para regrar a vida em casa.
Reportagem na nova “telescola”: fomos espreitar como os professores dão aulas pela televisão
Esta segunda-feira, 20 de abril, juntou-se a essa epopeia a “tele-escola”, uma palavra antiga, do tempo em que foi a forma de levar o ensino preparatório aos lugares mais remotos do país, agora reinventada para um tempo que, em teoria, tinha há muito pulverizado tecnologicamente cassetes e televisões.
De segunda a sexta, das nove da manhã às dez para as seis da tarde, há aulas do primeiro ao nono anos de escolaridade. Mudam de meia em meia hora, com intervalos de dez minutos e até um de 30, para almoçar. Só falta a campainha – e, mais importante, o pátio… Há Português e Português língua não materna, Espanhol, Inglês, Francês e Alemão, Matemática, História, Ciências Naturais e Físico-Química, Geografia e Estudo do Meio, coisas que não havia no tempo deste vosso servo, como “Cidadania”, oficina de escrita, hora de leitura e Educação Física. E é tudo um bocadinho chato, que é o sinal indiscutível de que estão a fazer as coisas bem: a dar aulas e não a fazer televisão.
Claro que as puríssimas redes sociais se ocuparam de cair imediatamente em cima do assunto. Ao que parece, um professor fez uma recomendação qualquer no sentido de os miúdos deverem ajudar a mãe nas tarefas lá de casa e outra, na aula de Educação Física, que sugeriu às meninas usarem leggings e aos meninos fato de treino. Na Santa Inquisição do Facebook & Semelhantes, estes dois crimes foram imediatamente condenados às chamas sob acusações de machismo e sexismo porque, como se sabe, as redes sociais estão lá para isso – para as pessoas que se sentem perseguidas perseguirem.
À parte isso, compreenderá qualquer criatura mais razoável que nenhuma daquelas pessoas é profissional de televisão, está a fazer a estreia diante de uma data de câmaras, micros e projetores, em regime praticamente “live on tape”, como a dado momento (no final de uma aula de Inglês) claramente se percebeu. Não há, certamente, tempo nem recursos humanos para mais.
Estes heróis não sabem bem para onde olhar, como caminhar ou, melhor ainda, como não caminhar no espaço do estúdio. Não sabem o que fazer às mãos, como gerir os tempos de resposta que não têm de alunos que não estão lá, nem sequer ainda a roupa que mais os favorecerá diante das impiedosas luzes e câmaras televisivas. Mas vão aprender e evoluir como todos – e daqui a duas ou três semanas já estarão num patamar completamente diferente, capaz até, quem sabe?, de lhes permitir preocuparem-se com cada palavrinha que dizem para não ofender qualquer madre superiora das redes.
Quanto às aulas em si, à matéria e ao método… Bom, poderíamos ter aqui uma longa conversa sobre classificar a poesia como ficção (isso é que era bom); se ler é um exemplo de ócio que deva vir no fim de uma lista encabeçada por atividades como jogar consola, jogar computador, navegar na net, falar no Messenger ou praticar todos os desportos olímpicos; ou, finalmente, se Camões pode continuar a ser ensinado à luz de razões geométricas e não literárias (quantos versos, quantas sílabas, quantas rimas, enfim…). Mas aborreceu-nos suficientemente termos sido lembrados que foi por causa de um arrufo com um Borges que o poeta foi degredado para África e, afinal, ninguém nos encomendou o sermão de fazer crítica de aulas.
“A escola ainda não acabou / Há sempre tanta matéria a estudar / Que eu chego mesmo a ter medo / De a qualquer momento / Já não ter lugar / Para mais conhecimento”, escrevia há muitos anos Jorge Palma.
Nós achamos que já sabemos, mas de facto nunca sabemos nada. 2020 ensinou-nos isso. Absolutamente nada. E, de certa forma, talvez isso seja libertador.
Alexandre Borges é escritor e argumentista