À primeira vista, a situação pode permitir conclusões relativamente otimistas: a Índia tinha, até esta quinta-feira de manhã, 21.797 casos de infeção e 681 mortes devido ao novo coronavírus, numa população de 1.300 milhões de habitantes (Portugal tem 10 milhões de habitantes e, segundo o Worldometers, está um lugar acima daquele país asiático pelas piores razões, com praticamente 22 mil casos oficiais de infeções e 785 de mortes até quarta-feira). Mas o retrato pode ser mais negativo para a Índia do que os números fazem crer.

Um mês depois de impor o confinamento obrigatório — com uma ação musculada por parte da polícia para quem não o cumprisse –, a Índia vai começando, aos poucos, a retomar a atividade económica, após atingir os piores números do desemprego em 40 anos, e apesar de os casos de infeção continuarem a subir. Nalguns municípios, o governo já permite atividades económicas com as devidas proteções. E garantiu que vão ser feitos 650.000 novos testes, que chegaram da China, nas próximas semanas. Mas são os números reflexo dos esforços da Índia ou escondem outra realidade por detrás? Segundo o El Confidencial, pode ser uma combinação dos dois.

Embora a Índia tenha começado, logo em janeiro, a testar os passageiros que viessem da China e de Hong Kong, o mesmo não foi feito nos principais portos — que só começaram a fazer as medições no início de março. Por essa altura, a Índia tinha 27 infetados em cinco regiões do país, que continuou a aceitar vistos do exterior até meados de março, embora o número de infetados entre estrangeiros estivesse a crescer.

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A Organização Mundial da Saúde chegou a alertar a Índia para a possibilidade de se tornar um foco da doença e pediu que o país aumentasse os testes de diagnóstico. O país começou a fazê-lo, em meados de março, mas a um ritmo muito inferior ao dos países vizinhos e face a outros com menos população. A Índia passou a fazer 10 testes por cada milhão de habitantes — enquanto que na Coreia do Sul, um exemplo extremo na despistagem, este valor estava, na altura, em 3.692; e em Itália, em 2.477. O número de testes também foi menor face ao Vietname ou à Tailândia, com 40 e 140 testes por milhão de habitantes, respetivamente. E se há menos testes, há menos casos detetados.

Na sexta-feira passada, um mês depois, os testes mal chegavam a 24 por milhão de habitantes, de acordo com Conselho de Investigação Médica da índia (ICMR). Ao todo, tinham sido testadas 318.449 pessoas desde o início da pandemia. Ou seja, apenas 0,02% da população do país.

O ICMR defendeu os valores e disse que “a Índia precisa de testar 24 pessoas para encontrar um resultado positivo. No Japão, um em cada 11,7 testes é positivo, uma das maiores proporções do mundo. Na Itália, é um em 6,7, e nos Estados Unidos, um em 5,3 ”disse o diretor do Conselho, acrescentando que nem toda a população “é vulnerável”. As declarações foram elogiados pelo Ministério da Saúde, com um porta-voz a salientar a “capacidade de conter, em certa medida, a propagação da epidemia graças à ação rápida do governo”.

Além de uma possível falta de testes, o El Confidencial aponta ainda o facto de alguns estudos apontarem para uma maior taxa de propagação em locais com baixa temperatura e humidade — o que ainda não é completamente certo. O exemplo de Kerala, um estado com temperaturas e humidade elevadas, pode ajudar a suportar esta ideia. O primeiro caso na Índia foi aí registado, no início de fevereiro. Entretanto, dos quase 400 casos positivos, dois morreram, mais da metade das pessoas já estão recuperadas, e apenas um caso foi registado entre sexta-feira, dia 17, e, pelo menos, quarta-feira, dia 22. A região já prepara até uma retoma após uma realização generalizada de testes e o controlo de viajantes.

Mas o caso de Kerala pode ser apenas uma exceção. Nas grandes cidades, como Bombaim, os casos multiplicam-se, sobretudo nas zonas residenciais com casas de banho comunitárias e poucas condições de higiene. Nas “favelas” de Govandi e, sobretudo, em Dharavi, os casos de contágio estão a aumentar. O El Confidencial dá mesmo conta de casos de pessoas sintomáticos que optam por não revelar o estado de saúde por vários motivos: como o receio de que possam incorrer em custos por tratamentos médicos, que não conseguem suportar, ou o estigma social em comunidades de migrantes que trabalham à jorna — e que, assim, poderiam perder as poucas oportunidades de trabalho diário.

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Por outro lado, as fontes de informação são contraditórias: os dados do Ministério da Saúde, de cada estado indiano e do ICMR não batem certo. E a diferença chega aos milhares de casos. Um relatório do ICMR chegou a referir que a Índia já tinha entrado numa fase de mitigação (em que o contágio é comunitário e difícil de controlar), mas o Ministério da Saúde logo esclareceu que, se tal fosse o caso, o governo informaria o país.

Aliás, um grupo independente de jornalistas, o IndiaSpend, publicou uma análise pouco abonatória para as autoridades. O IndiaSpend descobriu que a diferença entre o número de testes totais da Covid-19 e o número de pessoas diagnosticadas (980) eram os mesmos há nove dias.

A repetição do número coloca dúvidas sobre a versão das autoridades, que têm insistido que a uma pessoa são realizados vários testes para detetar possíveis “falsos positivos” e que isso explicaria a diferença entre os testes e as pessoas testadas. Ainda assim, é de estranhar que a diferença diária entre os testes realizados, os resultados positivos e os pacientes recuperados seja repetida durante dias. A discrepância entre os dados do Ministério da Saúde e os do IMRC fez com que este último deixasse de publicar o número de pessoas testadas, e agora apenas divulga o número total de testes.

As preocupações crescem também numa altura em que os migrantes rurais saem do confinamento e voltam às terras de origem, o que pode propiciar a propagação do vírus. Na Índia mais rural, faltam testes de despistagem.