“Profícuo produtor de obras singulares num Portugal tacanho e pouco reativo à evolução do mundo”, descreveu o arquiteto e investigador Mário Chaves. “Lisboa e Portugal raramente voltaram a ter tamanho empenho na qualidade arquitetónica de saber construir. Não é saudosismo, não é revanchismo, não é despeito, é a evidência do tempo.” O destinatário de tão elogiosas palavras é Cassiano Branco, arquiteto lisboeta de “personalidade difícil” que produziu obra entre as décadas de 1920 e 1960 e é hoje considerado um dos mais brilhantes modernistas da arquitetura portuguesa. Morreu há precisamente meio século, a 24 de abril de 1970, aos 72 anos.

Descrito como mordaz, satírico, lobo solitário, eventualmente boémio e certamente irreverente, deixou marca desde logo na cidade de Lisboa, em edifícios como o Hotel Vitória (1936), o Cine-Teatro Éden (1937) e o Cinema Império (1952). Projetou também o Portugal dos Pequenitos (1940), em Coimbra; o Grande Hotel do Luso (1940); os Paços do Concelho da Sertã (1934) e interveio no Coliseu de Lisboa e no Coliseu do Porto (obras que o antecederam). Também professor na Faculdade de Belas-Artes, terá sido sobretudo um arquiteto de síntese. Juntamente com Pardal Monteiro, Cotinelli Telmo ou Cristino da Silva, mas em percurso autónomo e mais tardio, ajudou a transformar a capital e o país com uma linguagem influenciada pela correntes arquitetónicas mais evoluídas que a Europa então conhecia.

No dia seguinte à morte, o Diário de Lisboa descreveu-o como “um dos mestres da geração de Jorge Segurado, Barata Feyo e Nelson Reis”. Num texto discreto e sem destaque, a secção Necrologia do vespertino acrescentava: “Excelente conversador, e escrevendo com elegância e brilho, foi colaborador do Diário de Notícias e do Diário de Lisboa e de vários órgãos da sua especialidade profissional, deixando importantes trabalhos sobre a nova estética de Lisboa, urbanologia e sismologia. Era também excelente desenhador e caricaturista, deixando inédita quase toda esta sua faceta artística.

“Republicano e democrata”

Cassiano Viriato Branco nasceu a 13 de agosto de 1897, na Rua do Telhal, filho de Cassiano José Branco e de Maria de Assunção Viriato. Matriculou-se em arquitetura na Escola de Belas-Artes de Lisboa em 1919, mas interrompeu o estudos e só terminou em 1926, aos 29 anos. “Sucessivos chumbos na cadeira de desenho de figura humana e ornato atrasam-lhe o percurso em relação aos seus colegas mais proeminentes, como Pardal Monteiro ou Cottineli Telmo, não participando na primeira fase do moderno em Portugal”, escreveu o investigador Paulo Batista.

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Depois de uma estada em Paris, onde visitou a Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels, ou seja, onde contactou com o movimento art déco, regressa a Lisboa e inicia-se na profissão. Entretanto, tinha-se casado com Maria Elisa Soares, em 1917, com que terá uma filha, Maria Elisa Soares Branco Lebre.

“O primeiro projeto onde assume uma personalidade moderna data de 1928, na segunda proposta para o Stand Rios de Oliveira, no número 227 da Avenida da Liberdade, desenvolvido em dois níveis cuja ligação era feita por elevador, uma novidade na época”, apontou Paulo Batista.

“Cedo revelou um espírito superior como criador de obra original, capaz de orientar e dirigir movimentos estéticos. Um reformador nascido com o futurismo e o cubismo, que acompanhou o modernismo e depois as linhas mestras da arquitetura atual”, escreveu o Diário de Lisboa em 1970. Referência talvez velada ao que viria a ser descrito como uma segunda fase do seu percurso, a partir da década de 40, onde terá revelado “cedência ao estilo normalmente apelidado de Arquitetura do Estado Novo”, o que o terá “impedindo de expressar a matriz inovadora dos primeiros anos”.

Foi “republicano e democrata desde sempre”, notou aquele jornal, a 25 de abril de 1970. Consideravam-no “irreverente”, “polémico”, o que o terá excluído das “encomendas oficiais”. A parte mais substancial da obra de Cassiano Branco acabou por ter origem em clientes particulares e construtores civis, através de encomendas de prédios de rendimento. “Foi o arquiteto da Lisboa não monumental, da Lisboa de todos os dias”, sublinhou o historiador Paulo Varela Gomes.

No dia seguinte à morte de Cassiano Branco, o Diário de Lisboa publicou um discreto obituário

Influência europeia

Num documentário emitido pela RTP em 1974, e hoje disponível no arquivo online da estação pública, o arquiteto Augusto Pereira Brandão (1930-2018) explicava que ao analisarmos a obra de Cassiano Branco devemos perguntar qual a cultura europeia vigente na arquitetura entre as duas Grandes Guerras, pois foi esse período em que Cassiano Branco esteve mais ativo.

Vigoravam três correntes principais. Uma cultura de intuição e expressão, sob influência de Gropius, Bruno Taupt, Mendelsohn ou Finsterlin. “Era a busca do imediato, da caracterização máxima dos volumes arquitetónicas, da expressividade máxima das aberturas, dos cheios, dos vazios, um sistema profundamente intuitivo à volta da forma plástica arquitetónica”, descrevia Pereira Brandão.

Em simultâneo, à medida que aquele expressionismo arquitetónico evoluía, foi-se-lhe opondo, sobretudo em França, “uma corrente purista, que procurava, pelo contrário, encontrar na arquitetura os modelos primários, puros, do elemento geométrico arquitetónico, principalmente com Corbusier”, narrava Pereira Brandão.

Finalmente, uma terceira corrente fazia a síntese daqueles dois movimentos. “É o chamado movimento neoplástico, uma tentativa de definir, pela primeira vez, o espaço de maneira diferente, o espaço que tinha sido definido desde o Renascimento. O Renascimento tinha um espaço gravitacional, toda a ideia de espaço era à base da fugalidade das linhas. O neoplástico, partindo da figura pura, vai desmembrá-la e fazer com que o elemento arquitetónico possa ser analisado e composto de muitas maneiras. Tanto fazia ver-se o edifício de cima para baixo, como de baixo para cima, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Não há planos referenciáveis.”

Assim, Pereira Brandão concluía: “Estou convencido de que Cassiano Branco foi influenciado em primeira análise pelo movimento expressionista, interligado com o movimento neoplástico, mas numa fase já de perda de força destes dois movimentos.”

[Cassiano Branco numa das caricaturas que o cartoonista António inaugurou em 2012 na estação de metro que serve o aeroporto de Lisboa]

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P???????? Uma das caricaturas de personalidades portuguesas do caricaturista António Moreira Antunes, numa das paredes da estação de Metro ???? que serve o Aeroporto Humberto Delgado ✈️ em Lisboa_21 – Esta caricatura representa o arquitecto Cassiano Viriato Branco, um dos mais importantes arquitectos da primeira metade do século passado em Portugal. O Teatro Eden em Lisboa, o Coliseu na cidade do Porto ou a Câmara Municipal da Sertã são exemplares obras deste arquitecto que tinha a fama de dar sempre uma lufada de modernidade aos trabalhos que projectava. Como Cassiano Branco não era grande apoiador da política de Salazar, muitos dos seus magníficos projectos não foram aprovados pela ditadura. Em 1958 ele apoia a candidatura do democrático general Humberto Delgado à presidência da República; é por isso que ele mais tarde é detido pela polícia política PIDE. Em abril de 1970 Cassiano Branco morre com 72 anos em Lisboa ???????????? #lisboa #portela #sacavem #aeroporto #metropolitano #caricatura #caricaturista #antonioantunes  #pedradelioz #arquitetura #cassianobranco #salazar #pide #humbertodelgado #teatroEden #cmserta #coliseudoporto #angelpaulinho D???????? Eine der Karikaturen des portugiesischen Karikaturisten Antonio Moreira Antunes an einer Wand der U-Bahnstation ???? am Lissabonner Flughafen_21 ✈️ – Diese Karikatur stellt den portugiesischen Architekten Cassiano Branco dar, einen der wichtigsten Architekten der ersten Hälfte des letzten Jahrhunderts in Portugal. Das Eden-Theater in Lissabon und das Konzertsaal Coliseu in der Stadt Porto sind zwei beispielhafte Werke dieses Architekten, der den Ruhm hatte, seinen Werken immer einen Hauch von Modernität zu verleihen. Da Cassiano Branco kein Befürworter von Salazars Politik war, wurden viele seiner großartigen Projekte von der Diktatur nicht genehmigt. 1958 unterstützte er die Kandidatur des demokratischen Generals Humberto Delgado zum Staatspräsidenten und wurde deshalb später von der Politischen Polizei PIDE festgenommen. Im April 1970 starb Cassiano Branco im Alter von 72 Jahren in Lissabon ???????????? #lissabon #lisbon #flughafen #airport #ubahn #karikatur #cassianobranco #architektur #angelpaulinho

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Três obras emblemáticas

Três das mais emblemáticas obras de Cassiano estão hoje classificadas como Imóveis de Interesse Público, o que só aconteceu muitos anos depois da sua morte. Em 1936 viu inaugurar o edifício do Hotel Vitória, hoje sede do Partido Comunista Português, na Avenida da Liberdade, classificado em 1984. “Juntamente com o Teatro Éden, esta obra poderá ser considerada uma das mais emblemáticas e originais da arquitetura portuguesa da época”, dizem os registos da Direção-Geral do Património Arquitetónico (DGPC). “Utiliza, de forma notável, os valores volumétricos do código modernista” com “referências fundamentais de todo um período da Arte Moderna da década de 30”.

O Cine-Teatro Éden, mais tarde hotel e espaço e comércio e serviços, data de 1937, mas a construção é anterior, com intervenções de diferentes arquitetos. A escadaria interior, aparatosa, foi ali o risco mais emblemático de Cassiano Branco. “De típica construção dos inícios dos anos 30 do século XX, o teatro apresenta planta retangular, que prima pela evidente horizontalidade e cobertura em terraço”, registou a DGPCP.

Finalmente, o Cinema Império, ou Cine-Teatro Império, na Alameda D. Afonso Henriques, foi inaugurado em 1952 e classificado em 1996. É hoje da Igreja Universal do Reino de Deus. “A gramática decorativa da fachada traduz-se em linhas verticais coroadas por esferas armilares em ferro forjado”, anotam os técnicos da DGPC. “A corrobar a linguagem plástica, modernista, patente nesta obra, destaca-se o painel cerâmico de Jorge Barradas, que decora o restaurante do piso térreo.”