Jovanna, médica numa unidade hospitalar em Guadalajara, tinha acabado a manhã de consultas e voltava para casa quando ouviu um grito. Ato contínuo, sentiu alguma coisa na cara. Não viu quem foi, não percebeu de onde veio mas percebeu que algo lhe tinha caído em cima. Pelo cheiro, percebeu que era lixívia. Ficou com queimaduras na pele, além de uma conjuntivite. “Escolheram-me porque tinha a bata vestida. Não vi nada do que se passou, não sei quem foi. Sei que atacaram outro médico no mesmo dia”, disse. Mais um médico, mais um dia.

Neste caso, contado pelo correspondente do The Guardian no México, houve mesmo um ataque. Com lixívia. Mas também há relatos de profissionais de saúde com dedos fraturados e ameaçados com armas. E outros que, não chegando a este extremo, mostram bem como têm de lutar contra mais adversários do que aquele que deveria ter agora todas as atenções, a Covid-19. O Buzzfeed contou a história de José Arturo Vera, médico na zona norte do país. Depois de um turno de 12 horas, e quando entrava na zona da sua casa, em Monclova, foi mandado para trás por um polícia que bloqueava a estrada mas um soldado deixou que passasse ao perceber que era um profissional de saúde. Pouco depois, alguns agentes começaram a tirar fotografias da sua casa. Respondeu da mesma forma. Enquanto um lhe atirou o telefone ao chão, outro agrediu-o. Ainda esteve detido uma hora.

“Usei o uniforme de enfermeira durante 27 anos com muito orgulho, assim como os médicos fizeram o mesmo. Hoje estamos a tirar as batas quando saímos porque não queremos ser agredidos”, confessou Fabiana Zepeda, a enfermeira chefe do Instituto Social de Segurança do México. São já dezenas de casos de agressões a profissionais de saúde num país que registou o maior número de novos casos (1.239) e mortos (152) nas últimas 24 horas. Ao todo, o México tem 12.872 infetados com Covid-19. Mas a pandemia está longe de ser o único problema.

O El Mundo conta mais episódios dessa violência: em Axochiapan, quiseram queimar um hospital quando ficou a saber-se que iria receber infetados com o novo coronavírus, algo travado à última pela polícia; em Nuevo León, houve portas e janelas danificadas devido ao fogo; em Jalisco e Sinaloa, registaram-se ataques com água e cloro a enfermeiras; a uma outra enfermeira, em San Luis Potosí, fraturaram dois dedos da mão; e ainda houve mais uma enfermeira, neste caso em Durango, ameaçada com uma arma por uma vizinha. Este tipo de comportamentos, que se registam noutros países sul-americanos e pelo mundo (como a Índia, por exemplo), tem vindo a ser uma das grandes preocupações do governo mas existem outros focos problemáticos prontos a rebentar.

Numa conferência de imprensa este sábado, a Unidade de Inteligência Financeira do México (UIF) deixou um série aviso, já transmitido às demais autoridades, que o desemprego que aumentará devido à pandemia terá o condão de aumentar o recrutamento de pessoas para o crime organizado. Por exemplo, uma das grandes preocupações é que as encomendas de fentanil cheguem aos hospitais, farmácias e demais locais de saúde e que não sejam desviadas por grupos armados ou toxicodependentes. Em paralelo, a corrupção e a possibilidade de haver um aumento do crime de branqueamento de capitais por organizações não lucrativas são outros dos problemas.

Já antes, há três semanas, as tensões sociais crescentes no México eram uma realidade, nesse caso por outro motivo: várias comunidades começaram a formar a ideia de que, como havia cerca de 500 pessoas ligadas à elite do país infetadas de forma direta ou por contágio por terem estado no resort de Vail, no Colorado, era sobres eles que recaía a culpa da propagação da Covid-19 numa fase ainda embrionária em território mexicano, como contava o El Confidencial. Também por isso, houve tentativas de retaliação. Que se alargaram aos profissionais de saúde.

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