“Que me importa se é Schafly ou Schlafly? Nunca mais direi o nome dessa mulher.”

As palavras da feminista Betty Friedan no primeiro episódio da nova série da HBO, “Mrs. America”, só são verdade em 50 por cento. Sim, Phyllis Schlafly é um nome que ouvimos pouco ou nada nas últimas décadas. Mas não, esta ativista conservadora não foi só uma fagulha passageira na saga dos direitos das mulheres. Foi, aliás, uma barra de dinamite no sucesso de Friedan.

Schlafly, não sendo uma figura histórica à qual voltamos recorrentemente, conseguiu empurrar para trás a luta feminista em décadas. E, mais do que isso, foi das primeiras a perceber e a moldar uma forma de fazer política muito reconhecível nos dias de hoje: a de usar o medo, a manipulação de uma comunidade e a mentira para chegar ao seu destino. Era o Breitbart News antes da internet e das redes sociais, quando uma newsletter em papel impressa em casa tinha de chegar para semear a união de uns e a discórdia dos outros.

“Mrs. America”, a saga em nove episódios da luta de Phyllis Schlafly (papel desempenhado por uma irrepreensível Cate Blanchet) para parar o ERA (Equal Rights Amendment, em português Lei Para A Igualdade de Direitos), não estreia — infelizmente — fora de tempo. Basta pensar que, quase 40 anos depois da história aqui contada, uma proposta de lei que era dada como garantida — até o Presidente republicano Richard Nixon era a favor – ainda não foi ratificada no congresso dos Estados Unidos. Uma mulher que defenda os seus direitos ainda é várias vezes apelidada de histérica, ingrata ou simplesmente feminazi, um dos termos mais horríveis a pulular no Facebook de tios ou ex-colegas de secundário com os quais evito falar. A quarta vaga do feminismo, encabeçada pelo movimento Me Too, começa a perder o gás e a ser ridicularizada numa esperança de que vá encarquilhar e desaparecer.

[o trailer de “Mrs. America”:]

O poder da ativista anti-feminista ainda se faz, portanto, sentir com razoável pujança. A autora do polémico livro A Choice, Not An Echo (“Uma Escolha e Não Um Eco”) morreu em 2016, aos 92 anos, dois meses antes de ver o amigo Donald Trump ser eleito Presidente – numa luta ganha, ironicamente, a uma mulher, a única a chegar perto de ser a primeira presidente dos Estados Unidos. Um artigo da Vulture descreve esta mão invisível de Schlafly de uma maneira certeira e com um certo odor a enxofre:

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“Se, como dizia Baudelaire, o maior truque de diabo foi convencer o mundo de que não existia, a ironia da herança de Phyllis Schlafly é a de que ela diminuiu as mulheres com tal eficácia que a sua perniciosa influência na política norte-americana nunca recebeu o crédito que devia”.

Phyllis Schlafly não é uma personagem de ficção (é possível ver os debates reais no Youtube, em caso de se achar que a série exagera), mas se fosse era o Némesis perfeito, o sonho molhado de qualquer guionista com um gosto especial por arquitetar personagens malvadas, complexas e cativantes. Carreguei no play do primeiro episódio de “Mrs. America” pronta para destilar fel perante uma mulher que só podia ser, à falta de melhor palavra, uma imbecil. Mas é essa parte da perfeição de Schlafly enquanto protagonista: é uma mulher inteligentíssima. Aliás, está habituada a saber que é geralmente a pessoa mais inteligente da sala – mesmo que seja a única mulher.

Nasceu para estar em frente a uma câmara ou num palco com um púlpito, nasceu para convencer pessoas dos seus ideais. Era uma mulher ambiciosa, com aspirações políticas, que se licenciou aos 19 anos e que se especializou em armamento durante a Segunda Guerra Mundial. É a vilã de sonho, complexa, fascinante e até incongruente na dose certa. Não será por acaso que a escritora Margaret Atwood baseou a personagem Serena Joy de The Handmaid’s Tale (também agora uma série de sucesso) nesta ativista. Ambas parecem ser muito mais argutas do que as decisões que tomam.

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Apesar de se focar na líder do movimento conservador, que supostamente defendia as donas de casa que as liberais esnobavam (mas as donas de casa ricas, com criadas de outras etnias para fazerem tudo por elas), “Mrs. America” traça também um retrato de outras figuras do início dos anos 70. Aliás, cada episódio tem o nome de uma personagem e só o primeiro tem o nome de Phyllis. É possível perceber as cisões e disputas no meio da vaga organizada feminista. Ao tentarem organizar-se em torno de um ERA que começa inesperadamente a falhar, deixam à vista as costuras mal-amanhadas de tentarem juntar diferentes visões sobre raça, homossexualidade ou simplesmente estratégia política. Também não terá ajudado o estatuto de rockstar de Gloria Steinem, causador de invejas e pruridos.

Este desfile de personagens secundárias é um dos encantos de “Mrs. America”, já que o elenco é fortíssimo: Rose Byrne (“Bridesmaids”), Elizabeth Banks (“Hunger Games”), Uzo Aduba (“Orange Is The New Black”), Margo Martindale (“The Americans”), Tracey Ullman (“The Simpsons”), para citar apenas algumas. Apesar da maioria destes nomes ser mais conhecido pelo seu trabalho em comédia, mostram aqui o seu dom para o drama. Bom, tirando talvez Byrne, que faz uma Gloria Steinem algo cartoonesca e que às vezes parece só alguém num baile de máscaras temático dos anos 70. Já Cate Blanchet está perfeita. Se fosse possível ganhar um Óscar por uma série, a australiana levaria o terceiro bibelô da carreira para casa sem dificuldades.

A série é, por vezes, um pouco explicativa – mas de modo justificado, numa tentativa de cimentar momentos verdadeiros que de outro modo pareceriam exagerados ou rocambolescos (como a cena da distribuição de pão, por exemplo). Aconselha-se um visionamento pautado com uma ou outra ida à enciclopédia porque, ao contrário do que dizia um certo comentador de economia, a História é muito útil. Cada vez mais. Tenham só cuidado com os spoilers, vá.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa