Kim Jong-un já não é visto desde 11 de abril, o que tem motivado uma enorme onda de especulação em torno do seu paradeiro e até da sua saúde, depois de algumas publicações terem dado conta de uma operação ao coração que correu mal e até da sua morte. Até agora, nenhuma destas informações foi acompanhada de provas.

Os especialistas do estudo da Coreia do Norte têm vindo a alertar para a necessidade de tratar estas informações com cautela, relembrando que esta está muito longe de ser a primeira vez que um líder do reino eremita desaparece misteriosamente — e, que, mesmo depois de terem sido dados como mortos, voltaram a aparecer em público como se nada tivesse acontecido. Foi assim com Kim Il-sung, com Kim Jong-il e também com Kim Jong-un, em 2014.

Antes de partir para os casos anteriores, vale a pena recordar a sequência de eventos que se formou em torno do atual ditador norte-coreano, do seu paradeiro e do seu estado de saúde.

Tudo começa com uma notícia do jornal Daily NK de 21 de abril que, citando uma única fonte (uma versão inicial da notícia apontava para várias fontes, o que foi posteriormente corrigido), disse que Kim Jong-un tinha sido operado ao coração. Seguiu-se a notícia da CNN, no mesmo dia, citando duas fontes — uma a dizer que os EUA estava a “monitorizar de perto” a saúde do ditador e outra a acrescentar que ele estaria “em perigo” depois de uma cirurgia.

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A narrativa adensou-se com a notícia da Reuters, a 24 de abril, de que a China enviara uma equipa de médicos para acompanharem o estado de saúde de Kim Jong-un. E, um dia depois, o nível dos rumores bateu no topo quando a vice-diretora da HKSTV, uma televisão de Hong Kong pró-China, disse na rede social Weibo que uma “fonte muito confiável” lhe disse que Kim Jong-un estava morto. A informação saltou para o público ocidental via TMZ, site de celebridades e mexericos que publicou a informação, reforçando ainda assim que não a tinha confirmado.

Procurando colocar água na fervura nos rumores sobre o seu vizinho a norte, a Coreia do Sul garantiu repetidas vezes que nada de “invulgar” se passava na Coreia do Norte. Mas pouco importava: o rumor já estava à solta. Kim Jong-un ainda não saiu a público, não há nenhuma prova de vida como fotografias ou vídeos e ainda outra certeza: o ditador da Coreia do Norte faltou à importante cerimónia de 15 de abril, que marca o aniversário do seu avô e fundador do país, Kim Il-sung.

Por agora, as especulações em torno do estado de saúde e do paradeiro de Kim Jong-un não passam disso mesmo: especulações. No entanto, nesta altura, resta a certeza de que esta não é a primeira vez que um líder da Coreia do Norte desaparece sem aviso, motivando rumores em torno da sua morte, que acaba mais à frente por desmentir com um regresso como se nada fosse. Esta é, de resto, um hábito que atravessa os mandatos dos três líderes daquele “reino eremita”.

(Jacques Pavlovsky/Sygma via Getty Images)

Kim Il-sung: morto a tiro, até que apareceu vivo

A 17 de novembro de 1986, o Chosun Ilbo, jornal da Coreia do Sul,  trazia na sua primeira página a notícia de Kim Il-sung, fundador e ditador da Coreia do Norte, estava morto. E não fora de qualquer maneira, garantia o jornal, com a manchete: “Kim Il-sung morto a tiro”. No dia seguinte, o Ministério da Defesa da Coreia do Sul não só comentou como confirmou aquela informação num comunicado onde se lia: “A 16 de novembro, o sistema de comunicações públicas da Coreia do Norte na zona desmilitarizada informou que o líder da Coreia do Norte foi morte a tiro”. No dia 18 de novembro, o Chosun Iblo publicou uma edição fora de série onde explicava ao detalhe o suposto assassinato de Kim Il-sun ao longo de sete páginas.

A notícia chegou a ser dada pelo The New York Times, que publicou na sua primeira página o título “Kim Il Sung, 74, dado como morto”. Naquela notícia, além do relato do Chosun Ilbo e do Ministério da Defesa da Coreia do Sul, havia o testemunho de um “diplomata ocidental em Seul” que dizia à altura: “Algo se passa, claramente. Várias provas fragmentadas têm vindo a acumular-se ao longo do fim-de-semana, o que sugere que ele possa ter morrido, mas nada foi até agora provado”.

Não só não foi provado como foi até negado, depois de vários jornais internacionais terem pegado naquela notícia. No próprio dia, Kim Il-sung apareceu em público, para receber no aeroporto de Pyongyang uma comitiva acabada de aterrar da Mongólia, onde se incluía o líder comunista daquele país asiático, Jambyn Batmönkh. Estava vivo e de (relativa) boa saúde, já que só viria a morrer oito ano depois, em 1994.

De acordo com a Associated Press, o Chosun Ilbo acabou por nunca publicar uma correção da notícia da morte de Kim Il-sung e muito menos do relato exaustivo de sete páginas do seu assassinato. Porém, quando completou o seu centenário, a 5 de março deste ano, o Chosun Ilbo reconheceu o erro e publicou um pedido de desculpas aos leitores.

(DMITRY ASTAKHOV/AFP via Getty Images)

Kim Jong-il: o AVC, três anos antes de morrer

A seguir a Kim Il-sung, veio Kim Jong-il — e também o segundo na linhagem real da Coreia do Norte teve um “reinado” polvilhado de falsas notícias que apontavam para o seu possível desaparecimento ou até homicídio.

Em 2004, recorda a Associated Press, Kim Jong-il regressava de comboio depois de uma visita à China quando, numa estação ferroviária norte-coreana perto da fronteira com a China, se ouvi uma enorme explosão — levando a que muitos supusessem que tinha havido uma tentativa, talvez com sucesso, de homicídio do ditador. Nenhuma das hipóteses se confirmou: houve uma explosão, sim, mas na sequência do choque de dois comboios que transportavam combustíveis; estima-se que tenha havido 150 mortes a lamentar, mas Kim Jong-il não fazia parte das vítimas.

Em 2008, voltaram os rumores da morte de Kim Jong-il. Durante mais de 80 dias, não houve qualquer presença pública do então líder da Coreia do Norte — e a sua ausência do 60.º aniversário da fundação do país levantou de imediato suspeitas de que algo se teria passado com Kim Jong-il. Numa primeira fase, o regime de Pyongyang disse que os rumores em torno de uma possível morte de Kim Jong-il não passava de “uma teoria da conspiração”.

Dessa vez, os rumores não estavam de todo ao lado do que se passou: Kim Jong-il tivera um AVC, que o deixou debilitado e incapaz de aparecer em público. O ditador da Coreia do Norte contou, à altura, com os cuidados médicos de dois neurocirurgiões franceses, como contou à altura o Le Figaro — o primeiro foi “recrutado” por dois diplomatas norte-coreanos que irromperam no gabinete daquele clínico em Paris; o segundo foi chamado de Lyon após a família de Kim Jong-il ter exigido uma segunda opinião.

Kim Jong-il viria a morrer três anos mais tarde, em dezembro de 2011. A sua morte foi reconhecida e anunciada pelos media estatais da Coreia do Norte dois dias depois do óbito.

(MANAN VATSYAYANA/AFP via Getty Images)

Kim Jong-un: a operação ao tornozelo e a bengala em público

Apesar de estar apenas à beira dos 23 anos quando sucedeu ao pai, Kim Jong-un sempre preocupou pela sua saúde. Além de ser evidente que é obeso, tendo aumentado de peso de forma visível ao longo dos anos, Kim Jong-un é também fumador, como vários registos público podem comprovar. Como tal, basta que o jovem líder da Coreia do Norte desapareça do radar e falte a alguma cerimónia de relevo para que os rumores em torno da sua saúde voltem a circular.

Os rumores que surgem agora em abril de 2020, e que ainda não têm explicação à vista, são um déjà-vu de quando Kim Jong-un desapareceu pela primeira vez desde que tomou posse.

Esse primeiro episódio remonta a 2014. Desaparecido desde 3 de setembro desse ano, faltou ao 65.º aniversário da cerimónia da fundação da Coreia do Norte. Depois de várias tipos de especulação, a 14 de outubro os jornais estatais norte-coreanos publicaram fotografias novas de Kim Jong-un. De acordo com a informação que os serviços secretos da Coreia do Sul recolheram, Kim Jong-un foi então operado ao tornozelo, do qual foi retirado um quisto. Esta explicação era consistente com as imagens anteriores ao seu desaparecimento, de julho de 2014, em que Kim Jong-un era visto a coxear e a caminhar com uma bengala — uma demonstração pública de fragilidade inédita num líder da Coreia do Norte.