Tony Allen esteve três vezes no Festival de Músicas do Mundo de Sines, em 2006, 2012 e 2016, e na primeira teve a sorte de conhecer o melhor baterista do mundo – eu. Pelo menos foi o que um amigo meu lhe disse, quando foi meter conversa com ele, escassos minutos antes de Allen entrar em palco: que o admirava imenso, que ele era o segundo melhor baterista do mundo.

Allen sorriu e, intrigado, perguntou quem era o melhor. Nisto, o meu amigo puxou-me pelo braço, e apresentou-me, inventando um nome qualquer para a super-estrela das baquetas em que naquele momento ele me convertera. E o senhor Tony Allen não só riu como alinhou na brincadeira, que durou até ele subir ao palco, pegar nas baquetas e proceder à explosão musical e emocional só possível a um gigante.

Já depois do concerto acabar perguntou-me, a rir, se eu também punha as pessoas assim. E com isto o sr Tony Allen, o homem que pôs o beat no afrobeat, não só nos ofereceu um tremendo concerto como me concedeu uma simpática histórica para contar – faço-o no dia de hoje porque foi hoje que se soube que Tony Allen morreu ontem, aos 79 anos de idade.

Morreu Tony Allen, lenda do afrobeat nigeriano e um prodígio da bateria e do ritmo

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A homens como Allen não basta o adjetivo “génio” – é preciso usar “lenda” para o qualificar dignamente: durante as décadas de 60 e 70 ele foi o diretor musical de Fela Kuti e os dois criaram o afrobeat, uma mistura de highlife, funk, jazz e rock psicadélico que tinha a particularidade de se estender por faixas longuíssimas que tanto serviam para transmitir mensagens políticas como para fazer dançar horas a fio (um concerto de Fela podia durar mais que um jogo de baseball e um jogo de baseball pode durar muito tempo).

O afrobeat em si não foi inventado por Fela e Allen – é um género que começa a surgir no início do século XX e que deriva do highlife do Gana, que usava guitarras repetitivas, aproximadas do funk (antes de haver funk). Mas Fela e Allen tornaram-no explosivo, maior que o afrobeat original e com uma diferença fundamental: o beat quebrado de Allen, o inqualificável beat quebrado que parecia fazer com que a canção parasse e avançasse ao mesmo tempo. Só que quando dávamos por ela estávamos tomados como que por um transe maníaco.

Vantagens de estarmos em 2020: se nunca ouviram falar de Tony Allen ou Fela Kuti, dirijam-se ao Spotify e experimentem, por exemplo, uma faixa como “Zombie” – está lá o beat, está lá a máquina de fazer dançar mortos, as guitarras entre o highlife e o funk, a grandeza que Fela levou para o afrobeat (coros, percussões múltiplas, metais) e que o tornou num incêndio. E de caminho aproveitem e ouçam No Accomodation for Lagos, o álbum que Tony Allen lançou em nome próprio, com os Africa 70, a banda de Fela Kuti, em 1977 – é um prodígio.

[“Zombie”:]

Nascido em Lagos, Nigéria, em 1940, Tony Allen não foi um menino-prodígio – pegou nas baquetas pela primeira vez aos 18 anos, numa altura em que trabalhava como engenheiro de som numa rádio local. Mas ele tinha uma vantagem: crescera a ouvir música, porque o seu pai era um indefectível melólano – que não só ouvia géneros de raiz africanos como possuía uma vasta coleção de discos de jazz. As suas primeiras paixões foram Max Roach e Art Blakey, mas em vez de paixões talvez possamos falar em obsessões, tal foi o furor com que o jovem Allen se dedicou a estudar o trabalho dos seus mestres e tentar imitá-lo.

Pouco depois, o trompetista Victor Olaiya convidou Alen para tocar percussão na sua banda – não bateria, mas uma espécie de pauzinhos, que eram usados localmente como instrumento de percussão. Quando o baterista de Olaiya saiu da banda Allen largou os pauzinhos e pegou nas baquetas e até ao fim da vida nunca mais largou o banco de baterista.

Em 1964 veio a grande oportunidade de Allen: Fela convidou-o a fazer uma audição para uma banda que estava a formar e que pretendia fundir jazz e highlife. Allen, com a sua obsessão por jazz americano, era o candidato ideal. Sendo Fela uma espécie de ditador, ele escrevia as partes de cada música da banda – exceto as de Allen. Aliás, de acordo com o que Allen posteriormente contou em entrevistas, não raro era Fela quem perguntava a Allen que ritmo determinada composição devia ter. E a composição tinha o ritmo que Allen inventava.

Ainda durante o seu período com Fela e os Africa 70, Allen começou a editar os seus próprios discos: primeiro Jealousy, em 1975, depois Progress (1977) e por último essa obra-prima que é No Accomodation For Lagos (1979). Pode dizer-se que Allen editou porque começou a desenvolver uma visão musical sua, mas a história verdadeira é mais complexa.

Kuti era uma figura gigantesca, excessiva para o bem e para o mal, cujo talento e ativismo não tinham par. A música que criou era o exato espelho disso – “Zombie”, por exemplo, é um ataque violento contra os militares nigerianos e a violência que provocavam. Como troco, o governo ordenou um ataque à comunidade em que vivia Fela Kuti, que levou um tareião. O seu estúdio foi incendiado, masters perderam-se para sempre.

[ouça o álbum “No Accomodation for Lagos”:]

Mas Fela tinha outro lado, que surgiu com o sucesso: nas digressões levava dezenas de fãs, que o idolatravam e Fela adorava essa idolatria; ao mesmo tempo, segundo Allen, não pagava royalties ao seu baterista, sendo que este considerava – muito possivelmente com razão – que as canções de Fela eram o que eram à conta dos ritmos que ele (Allen) criava.

Não se pode dizer que Allen saiu dos Africa 70 em 1979 – Allen deixou de colaborar com Kuti (depois de mais de 30 discos feitos em conjunto) mas levou-lhe uma parte da banda. E em 1980 lançou mais um disco de génio: No Discrimination. Se procurarem bem em lojas de discos em segunda mão (ou na internet) possivelmente ainda encontrarão edições duplas que juntam No Accomodation for Lagos e No Discrimination e bastavam estes dois discos para que Tony Allen fosse recordado como um herói.

E é aqui que a carreira de Tony Allen se torna dispersa e fascinante: muda-se para Paris e, já semi-famoso, começa a ser convidado para colaborar nos discos de outros, como o genial e recém-falecido Manu Dibango. A lista de colaborações de Allen é extensa e envolve nomes pesados: a grande Susheela Raman, Sebastien Tellier (é ele que toca em “La Ritounelle”, uma tremenda canção), isto além de fazer parte dos The Good, the Band and the Queen, super-grupo formado por Damon Albarn, dos Blur, que entretanto se embrenhara pela música africana adentro. (Em “Music Is My Radar”, dos Blur, Albarn canta “Tony Allen got me dancing”).

As reedições de início de século XXI, bem como a facilidade em partilhar canções que a explosão da internet trouxe, tornaram Tony Allen um herói dos melómanos. Mas ele não amoleceu. Um dos discos mais fascinantes da sua carreira – a meu ver, o mais fascinante – chama-se Psyco On Da Bus e foi lançado em 2001, a meias com Doctor L, Jean Phi Dary, Jeff Kellner, Cesar Anot.

Bastam os primeiros segundos de “Afropusherman”, que abre com um break esquisitíssimo de Tony Allen, para ficarmos colados em Psyco On Da Bus, um dos discos mais experimentais e alucinados que alguma vez ouvirão. É como se os cinco procedessem a uma desconstrução do afrobeat, rastreando-o até às origens africanas e jazzísticas e depois o lançassem no futuro.

[“Afropusherman”:]

Talvez a esquisitice do disco tenha origem na forma como foi concebido: em 1999, Allen e Doctor L (um produtor francês) lançaram Black Voices; na digressão de suporte ao disco entretinham-se a fazer jams, Doctor L a inventar sons no seu laptop e Allen a tocar o que quer que fosse que tinha à mão. Gostaram tanto daqueles esquissos que resolveram trazer mais gente para os trabalhar – e o resultado é um disco retalhado, feito de imensas pequenas partes geniais, atmosférico e melódico, em que linhas de baixo pesadas convivem com flautas e alaúdes. Uma maluqueira livre e simplesmente brilhante.

É fácil experimentar quando se é novo – mas Tony Allen continuou a experimentar mesmo depois de velho, e continuou a tocar pelo mundo fora o seu afrobeat, assim conhecendo, em 2006, o melhor baterista do mundo, que agora chora a morte de um génio.