Morreu aos 79 anos o baterista nigeriano Tony Allen e os títulos na imprensa internacional são suficientemente claros e sintomáticos da sua importância. No Reino Unido, a BBC diz que morreu um “pioneiro do afrobeat” mas também aquele que Brian Eno descreveu como “talvez o melhor baterista que já existiu”, enquanto o The Guardian lembra que foi um dos fundadores do afrobeat e “um baterista lendário”. Nos Estados Unidos da América, o jornal The New York Times e a revista Rolling Stone estão perfeitamente alinhados: morreu, lê-se em ambas as publicações, “um pioneiro do afrobeat”.

A notícia da morte do baterista nigeriano foi avançada ao final da noite passada e confirmada pelo agente. De acordo com Eric Trosset, Tony Allen teve uma morte súbita, causada por um ataque cardíaco, embora subsistam dúvidas sobre o que terá motivado a paragem do coração. Isto porque, segundo o agente, o músico “estava em excelente forma” física. A morte não está relacionada com a pandemia do novo coronavírus, acrescentou Eric Trosset.

Nascido em 1940 na cidade de Lagos, na Nigéria, Tony Allen foi um músico autodidata desde jovem, inspirando-se não apenas nos ritmos da música popular africana e nigeriana — por exemplo na estética da Jùjú, do seu país, mas também no highlife, estimulante registo musical que despontava em alguns países, da sua Nigéria natal ao Gana — mas igualmente no jazz norte-americano que lhe chegou sobretudo aos ouvidos nos anos 1950 e 1960.

Foi precisamente pela mistura entre o jazz, muito popular nas comunidades afro-americanas dos EUA, e o highlife (ou hi-life) que Tony Allen começou a evidenciar aquilo que definiria grande parte do seu percurso: a vontade de cruzamento entre estéticas e estilos musicais, incorporando no mesmo caldeirão o groove sincopado e ritmado da música africana, o funk afroamericano e o classicismo jazzístico.

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Jeff Mills e Tony Allen - AFRICA NOW @OGR

@ Giorgio Perottino/Getty Images for OGR

O seu nome ficará sempre associado ao aforbeat,  género que criou toda uma linguagem musical nova nessa mistura entre ritmos africanos e norte-americanos e de que Allen foi um dos fundadores, em conjunto com o também pioneiro Fela Kuti, que liderou um importantíssimo grupo que teve Tony como baterista. Kuti, aliás, chegou a dizer que “sem o Tony Allen, nunca teria existido o afrobeat”, ainda que os dois tenham tido divergências no final dos anos 1970, com Tony Allen a deixar a banda alegadamente por desacordos económicos.

Porém, Tony Allen é uma figura importante globalmente e não apenas no afrobeat, até pela abertura que revelou ao longo da vida para incorporar na sua música estéticas ecléticas, que abarcaram até a música eletrónica mais experimental (trabalhou com o grande DJ e produtor musical do techno de Detroit Jeff Mills, por exemplo). Essa abertura e capacidade de dialogar musicalmente com sonoridades não necessariamente próximas do jazz, do funk ou do afrobeat que lhe eram mais familiares permitiu-lhe ir inovando permanentemente durante as várias décadas de duração da sua carreira.

Embora menos afamado do que Fela Kuti, a quem dedicou um tema no álbum editado este ano Rejoice (em que se ouvia: “Lagos nunca mais será o mesmo sem o Fela”), Tony Allen construiu um percurso único na longevidade e produtividade criativa. Dos anos 1980 e 1990 em diante, o seu nome ganhou notoriedade internacional “a solo”, mas foi já nos anos 2000, após colaborações com Damon Albarn (Blur e Gorillaz) e Charlotte Gainsbourg, que parte do público internacional ficou a conhecê-lo melhor enquanto Tony Allen e já não apenas enquanto antigo baterista de Fela Kuti com percurso a solo discreto.

Poucos músicos nascidos em África gravaram discos consistentemente ao longo de meio século, como ele o fez — começou no final da década de 1960 com Fela Kuti, gravou quase até ao fim da vida — e poucos podem dizer que mais de 40 anos depois de começarem carreira, já veteranos, continuavam a editar e gravar álbuns novos e a fazer digressões internacionais. Uma dessas digressões teve, aliás, paragem em Portugal há apenas três anos, para um concerto no festival de música LISB-ON — festival a que Tony Allen tinha regressado agendado já para este ano, para uma atuação em dupla com o DJ e produtor musical Jeff Mills.

As reações à morte de Tony Allen multiplicam-se na internet. O famoso baixista da banda Red Hot Chilli Peppers, Flea, que também gravou com o músico de Lagos num supergrupo intitulado Rocket Juice & the Moon, escreveu um longo texto de homenagem no qual descreve Allen como um “herói” e “um dos melhores baterista que já caminhou nesta Terra”, alguém com “um coração livre, bondoso e enorme” e “com um groove único”. Também o influente radialista britânico Gilles Peterson, habitualmente atento às sonoridades jazzísticas e à música africana, já fez a sua homenagem, através de um DJ-set em torno da música gravada pelo antigo baterista.