Apesar dos meus pais ainda não perceberem bem que raio é que eu faço para pagar a prestação da casa ao banco, eu trabalho na área do humor há cerca de 17 anos. Recorrentemente, perguntam-me porque não faço stand up, essa espécie de pináculo não oficial do estatuto cómico. A resposta simplificada é a de que a grande maioria das pessoas que mais admiro e cujo percurso mais invejo não são comediantes de stand up – são guionistas de humor, que criam e desenvolvem as suas próprias séries de televisão, algumas delas com vestígios de autobiografia. Entre elas contam-se Tina Fey, Aziz Ansari, Rachel Bloom ou Mindy Kaling – esta última responsável pela atual série número 1 na Netflix um pouco por todo o mundo (incluindo Estados Unidos, Índia, Alemanha, França, até Portugal), “Never Have I Ever” (em português o título é “Eu Nunca”).

“Never Have I Ever” é um sucesso algo inesperado, tal como a própria autora assumiu num post de Instagram:

“Estou verdadeiramente em choque. Não acredito que a nossa série sobre uma pequena família indiana foi vista por tanta gente”.

Sem nenhum ator conhecido no elenco (a protagonista, Maitreyi Ramakrishnan, é uma absoluta estreante encontrada num casting lançado no Twitter), o enredo é vagamente baseado na adolescência de Kaling, uma norte-americana filha de pais emigrados da Índia. Neste caso, acompanhamos o regresso à escola de Devi, uma rapariga a recuperar da morte inesperada do pai e de uma doença súbita que a fez momentaneamente andar de cadeira de rodas vários meses. Livre dessas amarras, Devi quer apenas o que todas as miúdas da sua idade querem: ser popular e fazer sexo escaldante com o rapaz mais giro da escola.

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Para tal, conta com duas melhores amigas, um némesis com quem compete por boas notas e um sex symbol que é mais do que parece. Devi navegará por vários momentos de vergonha alheia, tão sumarentos que é impossível desviar o olhar. Sim, Netflix, eu sei que vou no quarto episódio seguido, mas ainda estou a ver, tira lá essa mensagem condescendente do ecrã.

[o trailer de “Neve Have I Ever”:]

A maioria das angústias teenagers são globais e até intergeracionais, claro, mas “Never Have I Ever” abraça realidades muito concretas da realidade indiana, como a celebração do feriado hindu Ganesh Puja ou os casamentos arranjados. Fá-lo com uma desenvoltura e uma frescura que torna o visionamento dos dez episódios algo que se faz de um trago. Não é por acaso: um artigo da revista Forbes considera que esta é uma das melhores séries já feitas pela Netflix. Uma mistura em doses equilibradas de ótimos diálogos humorísticos, momentos melancólicos, situações reconhecíveis e personagens bem esculpidas. O cocktail certo para se emborcar e aliviar a tensão do estado de calamidade, doce sem ser enjoativo. Eu vi tudo tão depressa que acho que pode contar, oficialmente, como a minha primeira e única bezana da quarentena.

Uma das coisas que contribuiu para o sucesso automático de “Never Have I Ever” é, na verdade, aquela que levará a que alguns potenciais espectadores a evitem: é uma série para adolescentes. O público dessa faixa etária é essencial ao gigante do streaming (uma das cenas da série até levou a um desafio de TikTok), mas será uma pena se pessoas com datas de nascimento mais refundidas no tempo não derem uma oportunidade àquilo que é uma série genuinamente bem feita. Sendo projectos muito diferentes no tom e na temática, pense-se no desperdício de boa televisão que teria sido se apenas os sub-16 tivessem visto “Stranger Things”. “Never Have I Ever”, também dando uma ótima sweatshirt da Bershka, merece ser mais que isso. E nem me façam falar do clichê “ah, isso é uma série para gajas” – é uma boa sitcom, polida, que não merece ser tratada como um anúncio a pensos higiénicos só por ter tantas mulheres na ficha técnica.

Posso assegurar-vos com uma jura daquelas com um polegar a sangrar que “Never Have I Ever” é zero piroso (ao contrário de outros filmes teen da plataforma), mas talvez alguns dos mais desconfiados possam ser persuadidos pelo currículo de Mindy Kaling: apesar de ser reconhecida como atriz, estamos a falar de uma guionista premiada que começou com a versão americana de “The Office”, talvez a primeira grande sitcom deste século. Kaling abordou várias vezes a escrita como uma espécie de psicoterapia à base do Word: a sua vida serve, de modo mais ou menos subtil, de base a muito do seu humor. Isso é notório em vários momentos de “Never Have I Ever”, desde a herança de uma família tradicional hindu até ao facto de, tal como a protagonista, Mindy ter já perdido um dos seus progenitores. É este um dos truques do guião da série: sendo escrita por uma adulta, não tem julgamento nem condescendência para com as angústias da sua protagonista mais nova. Porque, afinal, às vezes aos 44 anos não nos sentimos assim tão mais adultos do que aos 14.

Mas se a escrita de “Never Have I Ever” é um dos seus maiores trunfos, boas personagens falhariam se não tivessem um bom casting. E aqui parece que andaram a garimpar ouro num riacho. Um cast racialmente diverso, basicamente inexperiente, mas com uma química e uma verdade essenciais para que a série seja tão empática. Todos eles, à sua maneira, enchem o ecrã. Mesmo os personagens secundários não agem como meros penduricalhos a fazer de papel de parede para a protagonista. A geek do teatro, a lésbica no armário, o ricalhaço que só queria a atenção dos pais e até a mãe que não compreende a filha são estereótipos que talvez até já tenhamos visto antes, mas que aqui são mais do que um manequim da Zara a cuspir piadas e clichês. “Never Have I Ever” não é uma revolução, mas é uma série honesta, desempoeirada e divertida. Não são atributos negligenciáveis.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa