O cantor e pianista norte-americano Little Richard, pioneiro do rock’n’roll e autor de temas influentes que combinavam gospel e blues, morreu este sábado em Tullahoma, no estado do Tennessee. Tinha 87 anos. Tutti Frutti, Good Golly Miss Molly e Long Tall Sally foram algumas das canções que o tornaram conhecido. A morte do artista — cujo nome de batismo era Richard Wayne Penniman — foi confirmada à revista Rolling Stone pelo filho, Danny Jones Penniman. A causa da morte foi um cancro dos ossos, disse à agência Associated Press um representante legal do artista.

Personagem incontornável da música popular americana, Little Richard (o nome referia-se a uma alcunha da infância e não à estatura) era dono de um estilo eletrizante em palco e de uma imagem sexualmente ambígua, sublinhada por fatos de seda e maquilhagem pronunciada, totalmente em desuso, e por isso pioneira, na época em que se fez famoso.

Nasceu em plena Grande Depressão, a 5 de dezembro de 1932, em Macon, estado da Geórgia. A mãe, Leva Mae Stewart, e o pai, Charles Penniman, pedreiro e contrabandista de bebidas alcoólicas, tiveram mais 11 filhos, todos criados na fé cristã da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Em criança, cantou num coro de igreja, algo que o pai nunca apreciou. A provável homossexualidade do filho terá sido fonte de conflitos e aos 13 anos já Little Richard tinha fugido de casa para ir viver com uma família branca. Assim se tornou amigo de um rapaz que também viria a inscrever o nome a letras grandes na música popular norte-americana, Otis Redding — que acabaria por morrer aos 26 anos num acidente de avião, em 1967. Otis Redding era nove anos mais novo do que Little Richard e terão sido uma influência musical mútua.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Porteiro e ajudante de cozinha por algum tempo, lançou-se na música no fim da década de 40. Aos 19 anos, em 1951, assinou pela RCA Records e a seguir pela Peacock, mas teve pouco êxito com os primeiros temas. À época atuava numa zona boémia de Atlanta, a Decatur Street, ao lado de comediantes, travestis e stripteasers. Foi quando conheceu dois músicos que lhe deram os rudimentos do piano e uma provável influência estética: Billy Wright e S. Q. Reeder, dupla conhecida como Esquerita (tão abertamente homossexuais quanto era possível naquele tempo, escreveu o New York Times).

Mudou-se em 1955 para a editora Specialty Records, que supunha ter encontrado o rival musical de Ray Charles. Aí lançou uma série de sucessos. Desde logo, Tutti Frutti, gravado num estúdio em Nova Orleães em setembro de 1955, diz-se que por acaso, num momento de desespero criativo, de acordo com o investigador musical Cary O’Dell, da Biblioteca do Congresso dos EUA.

Com créditos atribuídos a Little Richard e Dorothy LaBostrie, o tema seria publicado no ano seguinte, numa época em que Elvis Presley, por exemplo, também dava os primeiros passos como cantor. Nunca se tinha visto nada assim. Tutti Frutti e o estribilho “a-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom” marcaram gerações.

[Little Richard numa prestação para o filme Don’t Knock the Rock (1956), de Fred F. Sears]

A letra original, com referências veladas à homossexualidade, terá sido alterada por Dorothy LaBostrie, a pedido da editora, e foi essa a versão gravada em vinil. A expressão “tutti frutti, good booty” passou a “aw rootie”, forma popular de dizer  “all righty”, e outras “passagens provocantes foram substituídas por referências inocentes a raparigas de nome Daisy e Sue”, segundo Cary O’Dell.

No rol de êxitos seguiram-se Long Tall Sally (1956), Rip It Up (1956), Lucille (1957) ou ainda Good Golly Miss Molly (1958). Little Richard lançou-se para a fama, primeiro nos EUA e só mais tarde na Europa, tendo influenciado várias artistas. Prince é o mais citado, mas também, antes dele, o igualmente excessivo James Brown, que apontava Little Richard como referência e chegou a tocar com alguns músicos deste, no fim da década de 50.

Houve mais. Elvis Presley gravou temas de Little Richard (Tutti Frutti e Long Tall Sally) e Paul McCartney chegou a dizer que Long Tall Sally foi a primeira canção que alguma vez interpretou em público, tendo-a gravado depois com os Beatles. Consta que Bob Dylan, enquanto estudante, escreveu no livro de curso que desejava juntar-se à trupe de Little Richard. Versões dele foram criadas ao longo das décadas por bandas e cantores como Everly Brothers, The Kinks, Creedence Clearwater Revival, Elvis Costello e os Scorpions.

[Little Richard reconhece-se como influência para Prince, numa entrevista a Joan Rivers em 1989]

“Se Elvis era o rei do rock’n’roll, eu fui a rainha”

Como referiu o jornal The New York Times no obituário publicado este sábado, Little Richard não foi o inventor do rock’n’roll, mas deu-lhe uma imagem nova e mudou-o para sempre. “Muita gente diz que sou o arquiteto do rock’n’roll. Não me vejo dessa maneira, mas acredito que seja verdade”, disse. O cabelo emproado, a roupa vistosa, os olhos e os lábios pintados fizeram dele uma figura carismática e extravagante. Atribuem-lhe a frase “se Elvis era o rei do rock’n’roll, eu fui a rainha”.

Little Richard considerava-se homossexual, bissexual, “omnissexual” — muitos antes de estas categorias terem sido inscritas no espaço público e conquistado uma certa unanimidade. Às atuações excessivas e elétricas juntava uma aparência escandalosa para a época, numa androginia só comparável à que mais tarde marcará o glam rock britânico, na década de 70.

Orgulhava-se de ter sido capaz de juntar os público branco e negro, num tempo em que o sul dos EUA conhecia a segregação racial. “Sempre pensei no rock’n’roll como uma forma de juntar raças”, terá dito o cantor, de acordo com o diário nova-iorquino, que cita o produtor H.B. Barnum, saxofonista de Little Richard nos primeiros anos e um dos entrevistados da biografia autorizada The Life and Times of Little Richard (1984), assinada por Charles White.

Naquele contexto de discriminação, as rádios americanas seriam pressionadas para não passarem temas de intérpretes negros, pelo que uma outra versão de Tutti Frutti, por Pat Boone, ainda em 1956, terá ofuscado o original de Little Richard.

A vida do artista parece ter sido marcada por uma dúvida permanente entre seguir um caminho de espiritualidade religiosa ou alimentar o intenso apelo do palco, entre ser fiel à religião ou aceitar a sua sexualidade. Em 1959, casou-se com Ernestine Campbell e decidiram adotar um rapaz, Danny Jones Penniman. O casamento terminou em 1963. Uma segunda relação heterossexual aconteceu com a bailarina Audrey Robinson, conhecida pelo nome artístico Lee Angel.

No auge da carreira, Little Richard “começou a ter atitudes estranhas”. “Surgia perante o público de adolescentes aos gritos e dizia-lhes que tinha recebido uma mensagem de Deus a avisá-lo para não atuar naquela noite”, registou o New York Times em junho de 1968. Não tardou a anunciar que se retirava definitivamente.

Tornou-se estudante de teologia na Oakwood College, uma escola adventista, e em vez dos concertos fulgurantes passou a pregar sermões e a cantar temas religiosos. O sinuoso percurso incluiu uma passagem por Inglaterra, onde conheceu os Beatles e os Rolling Stones, e ainda uma digressão na Austrália. Por volta de 1962, regressou à América, outra vez como performer rock, agora ao lado da banda The Upsetters, onde pontuava o iniciante Jimi Hendrix.

[Little Richard numa atuação identificada no YouTube como sendo de 2013]

Na década de 70, aturdido por anos de consumo de cocaína e álcool, afastou-se uma vez mais dos palcos. Ao longo das décadas de 80 e 90 fez-se personalidade televisiva, com convites frequentes para talk shows e programas de entretenimento. O último álbum de originais, Shake It All About, tem data de 1992 e selo da Disney, o que diz bem do consenso que, apesar da extravagância, já então o envolvia. Nunca deixou o palco. Em 2012, interrompeu um concerto em Washington e informou o público de que mal conseguia respirar. No ano seguinte, anunciou que tinha chegado o momento de se reformar.