Sérgio Sant’Anna, um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos cuja obra é marcada por uma linguagem transgressiva e experimental, morreu este domingo no Rio de Janeiro, informou a irmã, a também escritora Sonia Sant’Anna. Um dos dois filhos do autor, André Sant’Anna, adiantou que a causa da morte foi uma paragem cardíaca na madrugada de sábado para domingo, de acordo com o jornal Folha de S. Paulo.

Internado com sintomas de covid-19 desde o dia 3 no Hospital Quinta d’Or, no Rio de Janeiro, o autor estava ligado a um ventilador. Tinha 78 anos.

Sonia Sant’Anna publicou no domingo ao fim da manhã (hora de Lisboa) uma curta frase com a notícia: “Meus queridos, o Sérgio se foi. Depois a gente se fala mais.” Mais tarde, acrescentou um depoimento emocionado. Dezenas de comentários, com pêsames, foram deixados por amigos e conhecidos.

Meus queridos, o Sergio se foi. Depois a gente se fala mais.

Posted by Sonia Sant'Anna on Sunday, May 10, 2020

Nos últimos dias, Sonia Sant’Anna tinha publicado no Facebook várias atualizações sobre o estado de saúde do irmão. No sábado, resgistara: “Situação pulmonar estável. Os rins continuam não respondendo bem, e vai ser feita a diálise. Aos poucos ele vai acordando, mas ainda sem recuperar de todo a consciência.”

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“Tenho uma tendência à preguiça”

Sérgio Sant’Anna é descrito como um dos principais ficcionistas da língua portuguesa das últimas décadas, um “transgressor contumaz” que testou os limites da prosa, dos géneros literários e da própria ideia de literatura, como assinala a editora brasileira Companhia das Letras, casa do autor desde 1989. As suas obras “romperam tradições e derrubaram barreiras entre alta e baixa cultura, entre popular e erudito, numa linguagem descarnada tão reconhecível quanto escorregadia, que influenciou inúmeras gerações de escritores”, classifica a editora.

Sérgio Sant’Anna assinou vinte livros, incluindo romance e teatro, mas destacou-se como contista e neste género se consagrou. “Me dou melhor com textos curtos, tenho uma tendência à concisão. Confesso que também tenho uma tendência à preguiça”, disse em 2011. “A distinção entre conto, novela e romance me parece, num certo sentido, até singela: é questão de tamanho. Mas estou cansado de escrever novelas, cujo tamanho permite um maior desenvolvimento do conteúdo, e ver as pessoas chamarem essas novelas de contos”, acrescentou mais tarde.

São dele obras seminais da literatura brasileira como O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, dada à estampa no início da década de 80, ou ainda O Homem-Mulher (2014), ambas coletâneas de contos. As suas personagens “são homens e mulheres comuns, de classe média e meia-idade, às voltas com os problemas do quotidiano e pequenas tragédias pessoais, e que parecem encontrar no sexo uma válvula de escape para suas frustrações”, resumiu o jornal O Globo, a propósito de O Homem-Mulher.

Sobre o método de escrita e as passagens de cariz pornográfico nos textos de O Homem-Mulher, Sérgio Sant’Anna explicou em 2014: “Não penso nem quero ser um autor pornográfico, mas a pornografia entra na medida em que desejo narrar bem explicitamente certas passagens do meu texto.” E notou ainda: “Sou mais espontâneo do que talvez pareça. A cada texto, chego a um final que tanto pode ser uma explosão como uma abertura. Não desenvolvi nenhum princípio teórico sobre o género conto. Aliás, a cada narrativa me parece que estou optando por soluções que devem ser aquelas que o próprio texto pede. Eu só sei dizer o que distingue um bom conto no momento em que leio um bom conto.”

A obra do carioca chegou tardiamente a Portugal. A partir dos anos 2000, passou a ser publicada pelas editoras Cotovia e Tinta da China: O Voo da Madrugada (2004), O Monstro: Três Histórias de Amor (2005), Um Crime Delicado: Romance (2008) e mais recentemente O Pássaro da Perfeição : Contos Escolhidos (2019).

“A minha vida foi bem vivida”

Com cinco décadas de vida literária assinaladas em setembro do ano passado, tendo como referência o livro de 1969 Sobrevivente — célebre edição de autor que Sérgio Sant’Anna pagou com dinheiro emprestado pelo pai —, venceu por quatro vezes o Prémio Jabuti, um dos mais prestigiados galardões da literatura brasileira, e também o Prémio Portugal Telecom (atual Prémio Oceanos), entre outros.

No balanço de meio século dedicado à escrita, declarou à Folha de S. Paulo: “Há certa melancolia com a passagem do tempo. Mas seria muito pior se eu não tivesse feito nada. Minha vida foi bem vivida.”

Nascido a 30 de outubro de 1941, no Rio de Janeiro, Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva fez carreira como funcionário público, uma tradição entre autores brasileiros, registou a Folha de S. Paulo neste domingo. Além de jurista no Tribunal do Trabalho, deu aulas na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre 1977 e 1990, momento a partir do qual se dedicou apenas à literatura.

Cresceu em Belo Horizonte, formou-se em direito na Universidade Federal de Minas Gerais em 1966 e no ano seguinte chega a Paris com uma bolsa de estudo do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris, assistindo de perto à revolta dos estudantes de Maio de 68. Na mesma época viajou até à então Checoslováquia e testemunhou a Primavera de Praga. No início da década de 1970, após o livro de estreia, participou no International Writing Program, da Universidade de Iowa, EUA.

O segundo livro de contos, Notas de Manfredo Rangel, Repórter, saiu em 1973. O primeiro romance, Confissões de Ralfo: Uma Autobiografia Imaginária, data de 1975. Voltou ao Rio de Janeiro em 1977.

“É tentador dizer que o principal legado de Sérgio Sant’Anna para a literatura brasileira é a liberdade e a inventividade formal, mas a verdade é que sua contribuição é bem maior do que isso”, escreveu este domingo o escritor brasileiro Gustavo Pacheco. Ele é também um mestre da prosa límpida e direta, especialmente quando nos mostra como é possível ser lírico sem abusar dos adjetivos e outros penduricalhos

Fumador compulsivo até quase aos 70 anos, tinha nos últimos tempos por hábito adormecer por volta das três da manhã enquanto via em casa documentários televisivos sobre cinema e música. Continuou a escrever até há poucos dias. A Folha de S. Paulo publicou-lhe um conto inédito a 26 de abril último, Das Memórias de uma Trave de Futebol em 1955, e a revista Época editou a 1 de maio aquele que é agora o último conto do escritor ainda em vida: A Dama de Branco.