Já são cerca de 400 as pessoas recuperadas da Covid-19 que se voluntariaram para doar plasma aos doentes em estado grave, confirmou ao Observador o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). As recolhas de sangue devem arrancar ao longo da última semana de maio.

Estas doações vão ser feitas no âmbito de um ensaio clínico que as autoridades de saúde estão a organizar para testar o tratamento de doentes da Covid-19 com o plasma sanguíneo dos que já recuperaram. A estratégia tem dado resultado nas experiências feitas no estrangeiro e vai agora ser testada em Portugal.

A preparação deste ensaio clínico foi anunciada há três semanas pelo secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, prevendo o arranque para maio. Nessa altura, estavam ainda a ser analisados “critérios e fatores, nomeadamente ao nível do consentimento informado e da tecnologia para anticorpos neutralizantes”.

Em declarações enviadas ao Observador, o IPST explica agora que, apesar de o início das recolhas já estar previsto, a fase de administrar plasma nos pacientes está “dependente do grupo de trabalho criado para desenvolvimento e criação de proposta de Programa Nacional de Transfusão de Plasma Convalescente COVID-19 (PNTPC) para o tratamento de pacientes com COVID-19″.

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Tiago Leite, 33 anos, residente em Ovar, vai voluntariar-se para esta doação. Após ter revelado ao Observador o seu quotidiano enquanto recuperado da Covid-19, o treinador de futebol conta agora que já se está a informar junto das autoridades de saúde sobre os procedimentos que deve tomar para doar plasma, na esperança de ajudar os doentes em estado mais grave.

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“Na prática é como doar sangue. Para mim não traz nenhuma vantagem ou desvantagem, mas, pelo menos, ajudo quem mais precisa. A motivação é tentar que as pessoas fiquem melhores. Não havendo vacina ou nenhum tratamento comprovadamente eficaz, acho que é uma questão de responsabilidade cívica e obrigação moral“, contou ao Observador.

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Como funciona o tratamento com plasma

O plasma, a parte líquida do sangue, é essencialmente composto por água, mas também contém as proteínas, hormonas, minerais e nutrientes que circulam no sangue, explicou ao Observador o imunologista Pedro Madureira, investigador do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3s).

Além destas substâncias, e no caso de quem desenvolveu a Covid-19, “as pessoas que recuperaram da infeção vão ter no plasma muitos anticorpos contra o novo coronavírus”, acrescenta. Por isso, o tratamento com plasma transfere esse material rico em anticorpos contra o SARS-CoV-2 para os doentes infetados pelo vírus.

“Esses anticorpos entram no sistema circulatório do recetor e, como são específicos para o vírus, vão reconhecer as moléculas na sua superfície, revesti-lo e, assim, impedir que ele consiga ligar-se às proteínas na superfície das nossas células”, descreveu Pedro Madureira.

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Com o vírus neutralizado, isto é, revestido por anticorpos, o SARS-CoV-2 fica impedido de entrar numa célula e fazer dela refém, utilizando determinadas estruturas para se replicar e espalhar pelo corpo — algo preponderante para sobreviver.

Todos os pacientes infetados pelo novo coronavírus poderiam, em teoria, receber plasma para combater a doença. Mas como, na maioria dos casos, o sistema imunitário consegue enfrentar a infeção — e, de resto, o número de recuperados ainda não se aproxima do número de infetados, o que limita a quantidade de plasma disponível — “só fará sentido para os casos graves”, considerou Pedro Madureira.

Além disso, há sempre algum grau de risco na receção de plasma de dadores, explica o imunologista, uma vez que “em circulação estão algumas proteínas que o recetor pode não tolerar”. “Nunca é ideal doar plasma na sua totalidade”, acrescenta Pedro Madureira, embora haja tratamentos “para despistar possíveis efeitos tóxicos e retirar moléculas causadoras de alguns problemas”.

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Doar plasma é “obrigação moral”

Tiago Leite começou a ter sintomas a meio de março, estava o estado de calamidade prestes a ser declarado no concelho e um cordão sanitário quase a rodear Ovar. O treinador da equipa principal de futebol da Associação Desportiva Ovarense foi testado alguns dias depois, confirmando a doença, mas nunca teve de ser internado — nem ele, nem o irmão, também infetado. Acabaria por ser dado como recuperado a 1 de abril, depois do teste negativo.

Agora prepara-se para ser um dos doadores de plasma para os doentes mais graves. Diz que está habituado a este tipo de doações. Quando o pai, agora falecido, desenvolveu um cancro e estava a ser acompanhado no Instituto Português de Oncologia, o ovarense começou a doar sangue periodicamente. Agora “é continuar a fazê-lo”, possivelmente para o ensaio clínico que pode salvar vidas em risco nos cuidados intensivos dos hospitais.

As inscrições para as doações de plasma arrancaram na segunda-feira passada, 4 de maio, através de um formulário de registo a que pode aceder aqui e que, além dos dados pessoais do voluntário, pede ainda a data de início da doença, as datas das análises negativas para o SARS-CoV-2 e se o paciente esteve em internamento ou não. Quem for selecionado será contactado por telefone por um médico.

As colheitas vão acontecer em 10 unidades de saúde —três Centros de Sangue e Transplantação do IPST (Lisboa, Porto e Coimbra), três serviços de imuno-hemoterapia na região Norte, um na região Centro e três na região Sul. Os critérios de seleção dos inscritos ainda não são conhecidos, mas o IPST já assegurou que “as diretrizes para a seleção de dadores, colheita, análise, processamento, armazenamento e distribuição de plasma convalescente” já foram enviadas aos hospitais, disse Maria Antónia Escoval, presidente do Conselho Diretivo.

O ensaio clínico português não é o primeiro a testar a eficácia desta técnica em doentes da Covid-19. Em Itália, pelo menos nove pessoas internadas nos cuidados intensivos já foram curadas com recurso ao plasma recolhido de outros pacientes recuperados.

A transfusão de plasma já tinha dado resultados promissores em Wuhan, na China, no início da pandemia. Num estudo com cinco pacientes chineses, três tiveram alta e dois saíram de uma condição crítica para uma mais estável após terem recebido o plasma de pacientes recuperados, indica um relatório publicado no Journal of the American Medical Association.