O primeiro capítulo da história foi há menos de um mês. Entre todas as histórias de solidariedade e ajuda aos mais frágeis que têm partido dos quatro cantos do desporto, o ténis reinventou-se e decidiu voltar-se para dentro desde o primeiro dia. Conscientes de que era necessário apoiar a franja mais suscetível de toda a população durante uma fase em que tudo está interrompido, suspenso ou cancelado, os tenistas lembraram-se que o próprio ténis também tem uma franja mais suscetível.

Djokovic, presidente do Conselho dos Jogadores de Ténis, liderou a conversa no grupo de WhatsApp que inclui os 100 primeiros tenistas do ranking ATP. A proposta do sérvio, que recolheu desde logo o apoio de Federer e Nadal e da maioria dos atletas, era simples: que os tenistas mais bem cotados no ranking — logo, os que ganham mais dinheiro — criassem um fundo de apoio, o Player Relief Fund, para ajudar os jogadores mais abaixo na lista e aqueles cuja continuação no desporto pode muito bem depender desta ajuda financeira num período crucial.

Djokovic, enquanto presidente do Conselho de Jogadores de Ténis, teve a ideia do Player Relief Fund e teve o apoio de Nadal e Federer

A contribuição, claro, seria proporcional — os cinco primeiros do ranking doavam mais do que os cinco seguintes, esses cinco seguintes doavam mais do que os cinco seguintes e assim sucessivamente. A ATP, a WTA (o circuito feminino), a International Tennis Federation e as direções dos quatro Grand Slams mostraram apoio e disponibilidade para ajudar. O único pormenor que não ficou desde logo fechado foi a janela de tenistas que seriam apoiados por este fundo, já que as primeiras indicações davam conta de que seria desde o número 250 ao 700 mas outras informações já deram conta de que pode ser do 150 ao 500.

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Algo que ficou certo desde a primeira hora, então, foi que quatro dos cinco primeiros tenistas do ranking estavam de acordo com o plano: Djokovic, Nadal, Federer e Medvedev. Da mesma forma que ficou desde logo confirmado que o nome que falta a esse top 5 estava totalmente contra a ideia. Dominic Thiem, o austríaco de 26 anos que é atualmente o número 3 do mundo, explicou que acredita que os tenistas não são o setor que mais precisa de ajuda e questionou mesmo o profissionalismo de alguns atletas.

Dominic Thiem, o rapaz que era demasiado educado para ser tenista e agora é o “príncipe da terra batida”

“Nenhum tenista está a lutar pela sobrevivência, mesmo aqueles que estão muito abaixo no ranking. Nenhum deles vai passar fome. Não percebo mesmo porque é que eu lhes devo dar dinheiro. Prefiro dar dinheiro a pessoas ou a organização que realmente precisem dele”, disse Thiem em entrevista ao Krone, um jornal austríaco. “Há muitos, muitos jogadores que não colocam o desporto acima de tudo o resto e que não vivem de forma profissional. Nenhum de nós [os melhores jogadores] teve alguma coisa de mão beijada, tivemos de lutar para chegar ao topo. Não existe garantia, em nenhum trabalho, de que vai correr tudo bem e vou ganhar muito dinheiro”, concluiu o tenista.

Ora, as declarações de Dominic Thiem mereceram críticas imediatas por parte da opinião pública mas também de alguns tenistas, incluindo Dustin Brown, atual número 239 do ranking, que explicou que “se o coronavírus tivesse aparecido mais cedo” provavelmente não seria tenista. “Comecei no ténis em 2004 e vivia numa caravana. Comia com o dinheiro que ganhava a cada semana”, contou o alemão. Mas a maior crítica ao ponto de vista de Thiem chegou este fim de semana.

Ines Ibbou, uma tenista da Algéria que chegou a estar no top 25 de júniores mas atualmente é a número 620 do ranking WTA, decidiu responder diretamente ao austríaco através de uma carta aberta divulgada num vídeo. “Querido Dominic, depois de ler as tuas declarações, vi-me a pensar como seria a minha carreira e depois a minha vida se estivesse na tua pele. Sim, como é ser o Dominic Thiem? Então, comecei a ver como seria se os meus pais fossem ambos treinadores de ténis e me tivessem apoiado quando peguei na raquete pela primeira vez, aos seis anos, e instantaneamente me apaixonei pela modalidade”, começou por dizer a atleta de 21 anos, num claro resumo do percurso de Thiem. Em seguida, Ibbou começou a contar a própria história.

“Cresci na Argélia, numa modesta família e com pais que nada tinham a ver com ténis. Não posso mudar isso e não os culpo por isso. Ninguém escolhe onde nasce. Percebo hoje em dia que sou abençoada por ter pais como os meus, que amo mais que tudo e que não trocaria por nada. Num país como o meu, não é fácil ser uma atleta e não posso agradecer o suficiente aquilo que os meus pais sacrificaram para eu pudesse seguir o meu sonho. Se tu soubesses, Dominic…”, continuou Ines Ibbou.

A argelina recordou depois o tenista de que a Argélia não tem qualquer torneio da ITF, do ATP ou da WTA, que não existe qualquer técnico de nível internacional ou qualquer court coberto, ou seja, quando chove abundantemente não é possível treinar. “Mas não me leves a mal, isso não me levou a deixar de construir o meu caminho e ser uma das melhores jogadoras aos 14 anos. Bem impressionante, não é? E, assim como tu, atingir o topo do ténis juvenil. Não fui top 10, mas fui número 23 do mundo. Muito bom para uma africana, não é? Foi tão improvável que muitas jornalistas disseram que era um milagre”, acrescentou a tenista.

Ines Ibbou explica de seguida que, mesmo sendo a melhor tenista do país e uma das melhores em todo o continente africano, não foi apoiada por qualquer marca ou patrocinador, não recebeu apoios, não ganhou dinheiro suficiente com as conquistas juvenis para suportar uma carreira profissional e teve de depender do dinheiro da família e de amigos para continuar a viajar para torneios. Em seguida, lesionou-se, conseguiu regressar ao ranking WTA mas está longe dos sonhos que chegou a ter e das ambições que projetaram para ela.

“Hoje tenho 21 anos, estou perto do top 600 da WTA e ainda estou a perseguir o meu sonho, pelo qual sacrifiquei a minha infância, estudos, amizades, vida em família, vida financeira, férias, aniversários, a minha vida toda. Penso muitas vezes, Dominic, como é ter um treinador que te acompanha pelo circuito? Um preparador físico? Um fisioterapeuta? Um treinador mental? Um staff dedicado? (…) Dominic, deixa-me perguntar-te como te sentes quando dás um presente aos teus pais? Como te sentes quando os vês mais de uma semana por ano? Celebrar o teu aniversário com eles? Não me lembro o último aniversário que celebrei com eles (…) Digo-te, Dominic, não te pedimos nada a não ser um pouco de respeito e sacrifício. Jogadores como tu fazem com que mantenha o meu sonho. Por favor, não arruines isso”, termina Ines Ibbou.