Os países africanos estão a ponderar não pagar a dívida este ano, para financiar a luta contra a Covid-19, ou pedir uma suspensão dos pagamentos e arriscar entrar em “default”, ficando fora dos mercados financeiros no futuro.

De acordo com fontes governamentais africanas e um conjunto de analistas ouvidos pela agência de informação financeira Bloomberg, o estigma do não pagamento foi um dos principais temas na reunião de quinta-feira dos ministros das Finanças africanos, patrocinada pela Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA), com o objetivo de preparar uma posição conjunta que foi levada ao encontro com os credores representados pelo Instituto Financeiro Internacional (IFI), já esta semana.

Os países vão ter de avaliar se os acordos de suspensão da dívida influenciam a questão do estigma do incumpridor, mas é uma coisa que deixa muitos países africanos nervosos”, comentou o professor de Desenvolvimento Internacional e Economia Africana em Pretória, Daniel Bradlow.

“Estamos numa situação inédita, muitos investidores nos mercados emergentes sentem e percebem que muitos emissores de dívida soberana e também empresas vão ser duramente atingidos ou já estão em dificuldades”, considerou o gestor financeiro Sergey Dergachev, da Union Investment Privatfonds, em Frankfurt.

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A UNECA está a estudar um veículo financeiro que visa agregar a dívida dos países cuja maturidade termine este ano, no valor de 140 mil milhões de dólares, que depois seria garantida por uma instituição financeira com um “rating” de triplo A, de forma a descer os juros, que já ultrapassam em média os 10%, e assim evitando que qualquer país entre em Incumprimento Financeiro.

Os credores privados, escreve a Bloomberg, estão “relutantes” em aderir a uma iniciativa deste género, não só pela complexidade técnica e financeira, mas também pelas estruturas de acionistas da dívida, que muitas vezes estão sobrepostas ou, pelo menos, ligadas, e ainda pelas implicações que isso pode ter no rating não só dos devedores, mas também dos próprios credores.

“A única maneira de fazer isto é bilateralmente com os credores, é isso que estamos a aconselhar os ministros das Finanças a fazerem, e devem abordar os credores o mais cedo possível”, argumentou a fundadora do Global Sovereign Advisory, Anne-Laure Kiechel.

A escala e o tipo de ação financeira necessária para conter as consequências da pandemia da Covid-19 requer uma resposta macro, que só o setor governamental tem o poder de fazer, e a iniciativa do G20 está explicitamente sujeita à aplicação das leis nacionais, o que tem implicações muito diferentes, já que os países credores têm uma larga autoridade para exercer a sua prerrogativa de cancelar ou aceitar pedidos sobre a dívida usando qualquer base que queiram”, explicou à Lusa o advogado Thomas Laryea.

Pelo contrário, os privados estão sujeitos a outros constrangimentos: “Os credores privados, em contraste, podem ser sujeitos a obrigações legais ou regulatórias, como obrigações fiduciárias e requerimentos de ações coletivas, o que funciona como uma limitação às circunstâncias em que podem suspender os termos financeiros contratuais”.

Questionado sobre se os credores devem acordar um pacote global ou negociar caso a caso com cada um dos países que requeira um alívio da dívida, Thomas Laryea salientou o “enorme esforço” que está a ser feito pelo Instituto Financeiro Internacional (IFI, representante oficial dos credores privados a nível mundial) e afirmou que “dada a diversidade dos credores do setor privado e os seus modelos de financiamento e as leis por que se regem, é cauteloso não seguir um modelo igual para todos”.

Na reunião da semana passada, um dos ministros africanos disse recear que os credores prejudiquem o seu país se as críticas sobre os pagamentos forem demasiado notórias, e o ministro das Finanças do Benim, Romuald Wadagni, já disse publicamente que o risco de ficar arredado dos mercados financeiros pode sobrepor-se aos benefícios de uma suspensão do serviço da dívida.

Um das maneiras de evitar a exposição de pedir uma suspensão da dívida pode ser seguir a sugestão da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), inspirada no ‘Plano Brady’ para os países da América Latina, e que essencialmente defende a troca da dívida por nova dívida garantida por instituições financeiras internacionais, como primeiro passo para uma nova arquitetura do mercado da dívida a nível mundial.

A assunção do problema da dívida como uma questão central para os governos africanos ficou bem espelhada na preocupação que o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial dedicaram a esta questão durante os Encontros Anuais, que decorrem em abril em Washington, nos quais disponibilizaram fundos e acordaram uma moratória no pagamento das dívidas dos países mais vulneráveis a estas instituições.

Em 15 de abril, também o G20, o grupo das 20 nações mais industrializadas, acertou uma suspensão de 20 mil milhões de dólares, cerca de 18,2 milhões de euros, em dívida bilateral para os países mais pobres, muitos dos quais africanos, até final do ano, desafiando os credores privados a juntarem-se à iniciativa.

A UNECA, entre outras instituições, está a desenhar um plano que visa trocar a dívida soberana dos países por novos títulos concessionais que possam evitar que as verbas necessárias para combater a covid-19 sejam usadas para pagar aos credores e evitar a classificação de -“default” pelas agências de “rating”, que pode inviabilizar, na prática, o acesso aos mercados financeiros privados.

No domingo, o presidente em exercício da União Africana, o chefe de Estado da África do Sul, Cyril Ramaphosa, defendeu que a suspensão dos pagamentos da dívida deve vigorar durante dois anos e não apenas até dezembro.