“Você vê bem daqui?” é uma pergunta algo estranha durante um concerto. Porque o habitual é o salve-se quem puder, a não ser que o lugar seja marcado. Mas os tempos são novos, o mundo andou dois meses fechado e agora resolveu desconfinar. Retomam-se hábitos, agora diferentes, mas devagarinho. É por isso que esta pergunta, feita por um homem de viseira que estava a controlar as entradas dos veículos, dentro do parque de estacionamento da Fábrica Braço Prata, em Lisboa, soa a algo novo. São 21h00, a chuva deu tréguas, e este espaço cultural, parado há dois meses, resolveu reinventar-se com concertos drive-in, onde a atuação do artista no interior do edifício é projetada no muro no exterior, em simultâneo com a transmissão streaming nas redes sociais. Maria João, ao lado do pianista João Farinha, com o projeto Ogre, foram os primeiros a dar música à distância, a partir da sala Nietzsche. Um concerto por dia é o que se pretende.
Os automóveis são arrumados em três filas, a cada um é atribuído um número, mas já lá vamos. Do 1 ao 14 para a frente, do 15 ao 28 para trás. Assim terá que ser, mesmo que o frio convide a maior proximidade. Há quem prefira estar cá fora, de máscara, a trocar dois dedos de conversa, esse ato que soa quase a privilégio. Alguns trabalhadores — de uma equipa de 26 pessoas — desdobram-se em corridas entre o parque de estacionamento e o próprio edifício da Fábrica, onde ninguém entra sem ser o pessoal da casa. Falta pouco tempo para Maria João aparecer — é importante repetir o verbo — projetada, mas o desconfinamento ao ar livre traz outra novidade: o ir jantar fora.
Neste caso, jantar fora é dentro do carro, onde os estofos almofadados fazem de cadeira e o tablier de mesa. Para comer é preciso enviar mensagem para um número específico de Whatsapp. Do outro lado está alguém da Fábrica, que envia o menu. “Boa noite, bem vindo, pode efetuar o seu pedido, não se esqueça de referir o número do estacionamento”, lê-se na mensagem. Cá está, os números — é o zero. Pão de alho com queijo e manteiga e uma garrafa de água. Está escolhido. Uns metros ao lado, o senhor da viseira outra vez, que acaba de arrancar um grande ramo da árvore. “Pronto, mais um lugar à maneira”, diz. Se a plantou, só lhe falta escrever um livro (e ter um filho, se ainda não o teve).
Nos próximos tempos, a Fábrica vai abrir, com as devidas medidas de segurança, uma espécie de tenda, que dará para 40 pessoas, com uma distância de 4 metros entre mesas. Mas isso é no futuro próximo. Antes de fechar atividade, há dois meses, naquele parque estavam cerca de vinte caravanas, com pessoas de doze nacionalidades diferentes, que pagavam uma quantia simbólica e que poderiam usar alguns serviços, como casa de banho e restaurante. Fechou-se o país, acabaram-se as caravanas, tudo para casa, mesmo que a casa fosse aquela.
O diretor da Fábrica, Nuno Nabais, sentado, sem máscara, na tal tenda, está com um ar cansado. Mas, sobretudo, com cara de quem está desagradado com todo o modelo de confinamento “absurdo”. Olha, portanto, com mais preocupação para o seu próprio plano de confinamento que quer desenhar, uma espécie de “modelo de comunidade para combater a 2ª vaga da pandemia”, conta ao Observador. É todo um assunto que daria para uma longa noite de conversa, acompanhada por uma garrafa de vinho. Mas ainda não estamos aí, e Maria João está prestes a “subir” ao palco.
“Eu tenho desinfetador”, sossega um rapaz para uma amiga, de volta ao recinto improvisado. O álcool gel tomou o lugar do isqueiro. E se achávamos que Nuno Nabais tinha dito tudo na tenda, não. A primeira pessoa a aparecer projetada foi ele, sentado na sala Nietzsche, à hora a que era suposto começar o concerto agendado. Se de manhã o cardeal António Marto deu uma homilia em Fátima, Nuno Nabais deu uma missa no Beato. Missa não, “stand-up philosophy”, como se lia na página oficial deste espaço cultural. Foram ainda uns minutos valentes onde houve tempo para se falar de novas religiões, dos modelos de combate à pandemia dos diferentes líderes mundiais e do seu tal plano comunitário para a Fábrica. Não houve oração, nem risos, mas sim pregação. “Esta é outra forma de aparição. Não temos pastorinhos, mas temos condutores”. Punchline, sem espinhas. Poucas palmas, merecia mais pelo esforço. Entranha-se o discurso depois.
É a vez de Maria João. Está comovida, “cheia de nervos”, pronta para esta “aventura”. Do lado do parque ouvem-se as primeiras buzinadelas de alegria. Quem esteve fora do carro, lá permanece. Quem esteve lá dentro, assim fica. Começamos a viagem musical pelo jazz, com um beat electrónico. O som está bom, os motores no modo silêncio, só uns quantos faróis é que vestem a pele daquele tipo alto que não deixa ver nada. Nenhum concerto é perfeito, mesmo via streaming. No Facebook já há quem tenha voltado ao antigamente, num abrir e fechar de olhos. “Olá! Aparece para beber um copo!”, comenta-se. O stand-up passou para os ecrãs mais pequenos. Pena que os lugares estivessem reservados. Gastar dinheiro só se fosse por MBWAY para ajudar os artistas. Aqui a aparição é só mesmo a da Maria. A João, claro.
Não havia quem tivesse esperado um dia inteiro, na fila da frente, a morrer ao sol, pregando às grades, para ver o seu artista preferido. Mas esteve lá uma mulher, a absorver a música de Maria João, dançando sozinha, como se o parque fosse só seu. Não houve grupos de pessoas relativamente ébrias, a passar por entre as multidões, de braço em riste e cerveja ao alto, mas sim um jovem, sem máscara, a entoar “grande show”, antes de voltar para a entrada do parque. Não houve falhas no sistema de som, só mesmo na projeção, por breves minutos, com efeitos imediatos: um ou outro automóvel a regressar para o seu confinamento mais cedo. Não houve chuva torrencial para benzer o ato musical. Houve, mas pouca, e os vidros do carro sempre eram mais seguros do que um guarda-chuva. Não houve bis, mas houve a emoção final, aquela catarse de artista que só se sente quando o concerto termina. “Podem contar connosco, é amor, é para sempre. Puseram essa buzinadela aí toda para não nos deixar sozinhos”. Assim falou (e cantou) Maria João.
Termina a música, mas o público tem ainda qualquer coisa mais para dizer dentro do parque. Não se ligam os holofotes, só se afinam as vozes. Bate a meia noite, cantam-se os parabéns em dois grupos, numa coreografia em quadrado. Tiram-se fotografias, regista-se o momento e volta tudo para casa. “Nós queríamos duas cervejas, a quem pedimos?”, pergunta um senhor a quem escreve este artigo. Afinal, é mesmo um novo normal. A máscara fez questão de nos relembrar disso.