Podemos organizá-los por tamanhos, cores ou por temas, ceder à função meramente estética ou potenciar uma área empenhada no trabalho, dispor os seus inquilinos em pé, deitados, ou com peças decorativas em cima, só porque sim. O espaço entre os livros pode ser preenchido por elementos que queremos destacar ou usufruir de liberdade extra que lhe garanta respiração e luz.

Com a explosão de videochamadas e conferências, as estantes ganharam um inesperado protagonismo em nossa casa. A propósito do Dia Mundial da Arrumação, assinalado a 20 de maio, fazemos um Raio-X a esta peça com a Designer de Interiores Rita Salgueiro, que revela como podemos conjugar harmonia com a localização eficiente de um volume. E que nos ajuda a perceber como a estante consegue passar uma imagem do que somos — “ou a imagem do que não somos mas gostaríamos de ser”.

Como fundo de videoconferências, as estantes passaram mais que nunca a fazer parte da paisagem por estes dias. Basta ligar a televisão.
Verdade mas, talvez por ser Designer de Interiores, ninguém me mostra nada, há uma tendência a que me apareçam sempre em fundos neutros, com paredes brancas por trás e não dá para ver nada para além de uma parede.

Talvez receiem a avaliação. Que balanço faz das que costuma ver? Somos demasiado conservadores na arrumação ou tem assistido a boas surpresas?
Já nas Consultas de Ideias Online tenho visto um pouco de tudo, as menos harmoniosas, as que eu designo de “Biblioteca Nacional”, com os livros todos alinhados e outras mesmo caóticas, mas aí há pouco a dizer uma vez que essa é a razão para a qual estão a contratar o meu serviço.

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Acabamos por ser mais “Biblioteca Nacional” ou desorganizados crónicos?
Vendo centenas de casas por ano, posso claramente concluir que a maioria das pessoas não sabe organizar estantes, é quase tudo “Biblioteca Nacional” com vinte mil molduras e algumas peças decorativas a tapar os livros.

Espaço e iluminação, um dos aspetos que nem sempre consideramos quando compramos uma estante © Rita Salgueiro

Já teve alguma boa surpresa online?
Em diretos de Instagram, que não vejo assim tantos, tive duas surpresas, a da [empresária brasileira] Costanza Pascolato, não pela beleza ou pela forma como está organizada, que não há mesmo espaço para mais nada além de livros mas, pela curiosidade que me desperta. Passo os lives inteiros a tentar perceber que livros ali estão e pagava para poder lá ir espreitar pessoalmente. São 80 anos de história, arte e moda. A única estante que vejo diariamente e que me surpreendeu mesmo foi a do Bruno Nogueira. Fico louca com a (des)organização, apetece-me ir lá e pôr as coisas direitas, dar alma e vida àquela estante. De tal forma que, quase dois meses depois, continua a fazer-me confusão.

Podemos defini-las como nova peça statement, com os livros a assumirem-se como um novo ou redescoberto status ou estão longe de ser a peça-estrela de uma sala?
Claro que sim, a maioria delas ainda estão a precisar de ajuda mas as estantes são, sempre foram, e sempre serão, uma das peças mais importante e de destaque no espaço onde são colocadas, seja ele uma sala de estar ou um escritório caseiro, mais que não seja pela sua dimensão e peso visual. A diferença é que, cada vez mais, as pessoas começam-se a aperceber do potencial de uma estante, da diferença que faz tê-la bem organizada e decorada, quer em termos da harmonia que conferem ao próprio espaço, como do status que representa. Começam a perceber que, ao destacar alguns livros, conseguem passar uma imagem do que são, e algumas pessoas usam-nas até para passar a imagem do que não são mas gostariam de ser.

De simples armazém de livros a objeto de culto, que evoluções mais sofreu ao longo dos tempos uma peça como esta?
Inicialmente era um armário de arrumo de livros, um móvel direito com prateleiras, uma peça muito restrita porque muito poucas pessoas sabiam ler. Estavam em escritórios ou espaços da casa destinados a biblioteca, onde pouco mais havia à volta que os próprios livros e um cadeirão de leitura. Muitos anos mais tarde, passou a existir na maioria das casas exatamente com a mesma função, colocar livros. Um caixote com prateleiras. Mais tarde, com o design e a vontade de criar peças diferentes, as estantes foram ganhando várias formas, deixaram de ser só um armário com prateleiras e, os que continuavam a ser móveis a direito, começaram a receber peças decorativas que eram colocadas em frente aos livros — mais tarde as molduras juntaram-se ao cenário.

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Atualmente já não estamos tão presos a uma forma estanque?
Hoje veem-se estantes de todas as formas e feitios, são desenhadas para cumprir a sua função mas, com formas completamente diferentes. Temos escadas que são estantes, sofá com dupla função de sentar e guardar livros, temos todos os tamanhos e alturas, deixaram de ser um móvel do pavimento ao teto com prateleiras com uma única função e passaram a ser uma peça com que se pode brincar, quer com a forma como com a arrumação dos livros mantendo as molduras, as peças decorativas mas, com um ar muito mais cuidado. Até a estante clássica passou a ter detalhes que se destacam, isto porque os livros também mudaram, deixaram de ser livros só para ler e passaram a ser livros para serem vistos, e são esses que vão parar às estantes das salas, juntamente com peças que merecem destaque.

Essa ideia é interessante porque abrange também a forma como evoluiu o tratamento do próprio livro.
As estantes passaram de armazém de livros a peças de design, para colocar livros e objetos de alguma forma ostensivos. E, tal como hoje, ao longo de vários anos as estantes eram integradas em móveis multifunções, podia ser estante em prateleiras com portas por cima para outro género de arrumação, gavetas em baixo e pelo meio ainda ter um bar, podia ser móvel de TV, estante e cristaleira. Hoje, para além destes móveis multifunções, muitas vezes funcionam sozinhas como separadores de espaços.

Os planos de arrumação são extensíveis aos quartos dos miúdos © Rita Salgueiro

Como se conjuga o desafio da harmonia e fator estético com a missão prática de encontrar o livro que pretendemos?
Organizamos as estantes de modo a que as peças decorativas, as prateleiras, ou secções, separem os livros por temas, autores e/ou função. De um lado podem estar os romances, do outro os livros técnicos e profissionais, no meio ou na outra ponta os que correspondem a determinado tema. As lombadas têm de estar sempre visíveis, de preferência organizados de forma a que as letras estejam todas no mesmo sentido. Se inclinarmos a cabeça para a esquerda, conseguimos ler o nome de todos os livros que estão colocados ao lados uns dos outros, não se deve ter um livro com o nome a ser lido com a cabeça inclinada para a direita e ao lado outro em que temos de inclinar a cabeça para a esquerda, tem de ser um movimento único e fluído. Já coloquei livros deitados em que a capa estava para baixo mas, assim que se olha para a lombada o nome do livro destaca-se, por cima tem de ter um que tenha as letras no mesmo sentido e a capa para cima para fechar.

Não há salvação para os menos arrumadinhos?
A verdade é que, quem gosta de livros, mesmo que estes estejam arrumados por cores e com os temas todos misturados, sabe exatamente onde está o livro que procura, quem gosta de livros não se limita a lê-los, passa horas a olhar para eles na estante e a sua localização fica na memória.

Que aspetos na arrumação eram outrora impensáveis e hoje não podiam ser mais apetecíveis?
Colocar livros que não estivessem de pé. Os livros eram para ler, não eram para decorar. Mesmo muito mais tarde, anos 80/90, na altura das enciclopédias era impensável colocar metade da coleção de pé e outra deitada a travar, e ainda menos colocar uma moldura ou peça decorativa por cima da metade que estava deitada. Era um desrespeito pelos livros. Hoje quem gosta de livros aprecia não só a beleza dos seus livros como a harmonia com que se dispõem numa estante.

Que dicas costuma dar para tornar as estantes espaços mais interessantes? 
Variar e criar dinamismo na estante. Colocar livros deitados, outros de pé, colocar peças decorativas em cima dos que estão deitados, centrar e deixar respirar os que se querem destacar, colocar peças decorativas que queremos destacar a separar os livros.

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O que costuma estar a mais e a menos? Já mencionou o frequente excesso de molduras.
A menos, não costuma acontecer, as pessoas adoram acumular. A mais, são as molduras, não consigo perceber a lógica de colocarem três ou mais molduras em frente a um grupo de livros, nem se consegue ver a fotografia das molduras que estão junto aos livro e muito menos os livros.

De que é que nunca nos lembramos quando pensamos numa estante e acaba por ser relevante? 
Nós profissionais pensamos em tudo, depois é uma questão de orçamento do cliente, mas quem não trabalha na área raramente se lembra de comprar uma estante com iluminação ou iluminá-la. Além de ser muito mais fácil para procurar um livro, acaba por ter luz ambiente no espaço.

Para uma designer de interiores, qual o “tempo de vida” da arrumação de uma peça destas? Imagina uma decoração uniforme ao longo de vários anos? A rotatividade é uma virtude?
Varia, quem compra uma estante e livros para fazer uma decoração, simplesmente para compor o espaço, pode ficar com essa mesma decoração durante anos. Quem compra livros por gosto, está sempre em rotatividade, por variadíssimas razões, não há como conseguir manter todos sempre no mesmo lugar, principalmente se forem livros temáticos e de capa rígida, para entrar um naquele espaço tem de passar outro para um novo espaço, quanto muito conseguimos que alguns grupos se mantenham.