Em 2013, Bong Jon hoo, o realizador de “Parasitas”, rodou “O Expresso do Amanhã” (“Snowpiercer”), um filme de ficção científica (FC) pós-apocalíptica baseada na banda desenhada “Le Transperceneige”, de Lob, Legrand e Rochette. Após um desastre climático que deixou o mundo coberto de neve para sempre, os sobreviventes da catástrofe viajam num comboio que dá a volta ao mundo em contínuo e funciona como uma sociedade fechada, onde os mais ricos e privilegiados ocupam as carruagens mais luxuosas e próximas da locomotiva, e os mais pobres se aglomeram nas mais sujas e distantes. Até ao dia em que eclode uma revolução a bordo e um grupo de desfavorecidos começa a atravessar o comboio rumo à locomotiva.

“A Plataforma”, estreia nas longas-metragens do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, parte do mesmo conceito de “O Expresso do Amanhã”, só que agora aplicado na vertical. Aqui, a metáfora sobre a sociedade em que vivemos concretiza-se numa estrutura chamada O Buraco, uma prisão com 200 níveis e duas pessoas por nível, e um buraco retangular no meio, do primeiro nível até ao último. Todos os dias, uma vez por dia, uma plataforma a abarrotar de comida cuidadosamente confecionada, acionada por uma tecnologia que nunca é explicada. vai descendo de nível para nível, parando dois minutos em cada um. Os presos têm que consumir a comida nesses dois minutos porque não se pode tirar nada para guardar e comer depois. O castigo é uma rápida e mortífera subida ou descida da temperatura. (A conceção do cenário e a direção artística de Aziguiñe Urigoita são magníficas, impondo um sufocante clima carcerário futurista).

[Veja o “trailer” de “A Plataforma”:]

Quando a mesa chega por volta do nível 50, já quase só há sobras. Quando atinge o número 100, não há nada para comer, e quanto mais fome têm, mais barbaramente os presos dos níveis inferiores se comportam. Ninguém fica mais de um mês no mesmo nível, pode acordar um dia num nível superior, num médio ou num dos inferiores, onde a sobrevivência é mais problemática. Cada pessoa pode levar para o Buraco um objeto ou mesmo uma mascote. Goreng (Ivan Massagué) escolheu levar um exemplar de “Dom Quixote de la Mancha”, por pensar que ia ter muito tempo para ler. Mas não fazia ideia do inferno em que se ia meter. E depois de escapar por uma unha negra de ser comido pelo companheiro de nível, Goreng começa a pensar em alterar o estado das coisas.

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[Veja uma entrevista com o realizador Galder Gaztelu-Urrutia:]

Como diria o grande Nelson Rodrigues”, “A Plataforma” é um daqueles casos de “óbvio ululante”, uma metáfora elefantina e simplista do nosso mundo, onde os de cima se empanturram, os do meio aceitam o que sobra destes e os de baixo vivem na pobreza, no desespero e na violência. Só a solidariedade e uma mais justa distribuição dos bens poderá começar a resolver as desigualdades e corrigir as injustiças, e a iniciativa tem que vir dos que estão no estrato médio. Ver como a segunda companheira de nível de Goreng procura instruir os ocupantes dos níveis mais baixos do Buraco na necessidade de comerem apenas o necessário e deixarem alguma coisa para os dos que se seguem.

[Veja uma cena do filme:]

Esta mensagem tão simpática como reducionista é passada por Galder Gaztelu-Urrutia a golpes de violência insistentemente explícita, com “gore” à discrição, entre decapitações, desmembramentos, canibalismo, esmagamento de crânios e até alguma escatologia. O enredo deste filme, parte distopia de FC com mochila social, parte “thriller” de sobrevivência, parte festival de terror “splatter”, que pretende funcionar ao nível cerebral como ao nível visceral (e não faltam tripas de fora), vai ficando cada vez mais presunçoso e baço à medida que a mesa vai descendo de nível e se aproxima do fundo do Buraco, até um final ridículo e confuso, envolvendo uma “panna cotta” e uma criancinha salvífica. Mas por esta altura, já há um bom bocado que deixámos de levar “A Plataforma” a sério.