Será Quentin Dupieux obcecado com objetos? Ou serão os objetos uma abstração do real e um ponto de partida para a comédia? Em “100% Camurça”, filme que chegou quinta-feira, 14 de maio, ao Filmin e às plataformas VOD dos operadores de cabo, a inclinação é para a segunda. Mas há obsessão, claro. Mas não foi a obsessão que fez “Rubber – Pneu” (2010) uma das mais originais reinvenções do cinema de terror/fantasia da década passada. Foi a vontade de misturar as coisas, cruzar géneros e pontos de vista. Misturar o verdadeiro com aquilo que é real.

Em “100% Camurça” há um protagonista, Georges (Jean Dujardin), que começa a sua aventura pagando uma fortuna por um casaco de camurça. É o início de uma transformação – e obsessão – com a camurça, em que cada nova peça de vestuário que veste é uma camada da mentira que está a viver: para fugir à sua vida do passado, Georges finge ser realizador, convence Denise (Adèle Haenel) a trabalhar consigo e entra-se no jogo de não saber quem está mais fora da realidade: se ele ou se ela. “100% Camurça” é uma comédia que joga com o terror e a trapaça de um assassino em série. É como se Jacques Tati tivesse descoberto o sangue e justificasse a violência enquanto comédia. É um regalo.

Estivemos à conversa com o realizador, Quentin Dupieux, que tem uma vida paralela enquanto Mr. Oizo, músico dedicado às coisas da eletrónica que encheu os ouvidos da cultura pop com a “Flat Beat” e nos encheu os olhos com Flat Eric, o boneco amarelo que parecia um trapo de “Os Marretas” e que virou ícone da Levi’s no final do século passado.

[o trailer de “100% camurça”:]

Tal como nos seus filmes anteriores, aqui começa numa ideia simples e viaja para algo bizarro. Qual foi o ponto de partida para “100% Camurça”?
É sempre complicado descrever a origem de uma ideia, é uma mistura de várias coisas: porque nunca é só uma coisa ou um momento. Para “100% Camurça” queria juntar vários géneros de filmes de um modo muito realista. Lembro-me desse ser o ponto de partida. Disso e de querer fazer algo irreal e louco mas que acontecesse no mundo real.

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De onde surge a obsessão com camurça?
É algo que, simplesmente, não consigo explicar. Dei por mim a procurar por bons casacos online e fiquei obcecado por casacos de camurça. Mas nunca comprei um… Mas começa tudo assim, por exemplo, quando realizei o “Rubber – Pneu”, muita gente me perguntou o porquê de um pneu. É uma questão que surgiu “n” vezes, como é que tive a ideia para o pneu? É impossível explicar como, porque algumas coisas vão-se ligando a outras e perdes o rasto. Com o “Rubber – Pneu”, lembro-me de quando tive a ideia de mudar tudo para a história de um pneu, mas quando conto a história, não é interessante. Começou por ser um filme bem diferente, sobre uns cubos alienígenas que invadiam a terra. Mas depois mudei tudo, não é sobre coisas do espaço, porque me interessa lidar com coisas reais, por isso, optei por um pneu. A mesma coisa com o casaco, ou com a camurça, não consigo contar o porquê de um modo que seja entusiasmante.

Mas esses casacos de camurça costumam ser tão caros?
Sim, mas não aqueles iguais aos que uso no filme. Podes encontrar esses a 10 euros. Enquanto escrevia o filme encontrei alguns mesmo caros, de uma marca famosa, creio que a Ralph Lauren, e custavam cerca de cinco mil euros. Parecia incrível no modelo. Fiquei louco por ele mas nunca o comprei.

Mencionou há pouco que “100% Camurça” tem muitos géneros. Lembrou-me muito Jacques Tati. Também vê aqui uma comédia?
Sim. Isso é algo que funciona para qualquer filme que realizei: sei que um filme é bom se for divertido. É isso que estou a tentar fazer. Adoro fazer comédias. E é mais do que uma comédia. Mas sinto-me muito realizado quando os meus filmes são divertidos.

Mudou alguma coisa do argumento durante as filmagens? Quando a Denise assume o filme parece natural, pensado no momento, algo que não foi escrito…
Não, não mundo muito o argumento. Apenas a forma como a personagem dela se torna mais louca do que ele no final. Isso é algo que não estava no argumento. Tem muito a ver com a forma como a Adèle interpreta a personagem e, na altura, decidimos que fazer isso tornaria tudo mais interessante. Adoro a confusão: saberá ela que aquilo que vê é verdadeiro ou falso? Quando estás a ver o filme, também fazes essa pergunta, se ela pensa mesmo que ele está a ser real ou só a fazer um filme. Foi interessante brincar com isso e foi algo que decidimos juntos: aceitar que ela sabe que é verdade e que, no final, é mais doida do que ele. Ela quer vê-lo a matar pessoas.

O que dá uma maior profundidade à personagem.
Sim. Isso nunca esteva no guião. Estava penas lá a pergunta, mas nunca tinha encontrado resposta. Foi durante as filmagens, ao falar com a Adèle, que percebi que ela teria de ser mais louca do que ele.

Antes dos filmes, houve a música. E antes disso houve a publicidade, certo?
Não… eu só devo ter feito cinco campanhas na minha vida. Foi tudo um caso. A minha história é muito simples, fiz cerca de 50 filmes quando era miúdo, entre os 16 e os 23 anos. Estava sempre a filmar curtas-metragens. Um dia vendi um deles a um canal francês e eles questionaram-me sobre a música, se eu tinha os direitos sobre a música que estava a usar. Não tinha, não fazia ideia de como as coisas funcionavam. E, então, tive de substituir a música por algo original. Tive de criar a minha própria música para o filme par ao conseguir vender ao canal. Foi assim que comecei a fazer música. E depois entrei na música de dança. Contudo, venho da ficção. Comecei com pequenos filmes de ficção. E depois fiz alguns videoclips, talvez uns 10, e alguns anúncios. Não sou um tipo da publicidade.

O Mr. Oizo foi importante para o desenvolvimento da sua carreira como realizador?
Claro. Foi quando comecei a ter atenção. De repente, tenho esta música [“Flat Beat”] que fiz para um anúncio [da Levi’s], que se torna gigante e faz minha carreira explodir. Mas muita gente não sabia que eu fazia música, estava a realizar o anúncio e que também era um realizador. As pessoas pensaram que era um produto. Apesar de não gostar do termo, foi nessa altura que me tornei num profissional.

A música atrasou de alguma forma a sua carreira como realizador?
Não. Honestamente, não posso dizer que tenha uma grande carreira na música. Gravei muita música desde então mas… para mim acontece tudo ao mesmo tempo, música e cinema sempre estiveram ligados. Nunca me senti frustrado. Como gosto de fazer música e gosto do mundo da música de dança, foi óptimo para mim começar com tanto sucesso e, mais tarde na minha vida, realizar filmes.

Está a trabalhar num novo filme. Pode desvendar um pouco sobre esse novo trabalho?
É outra comédia sobre uma mosca gigante. Era suposto sair neste mês, mas foi adiado. Não sei quando sairá, mas já está pronto. É uma comédia funky.

É sempre fácil descrever os seus filmes: “é uma comédia sobre uma mosca gigante”…
Adoro isso. Sou um tipo minimal, gosto de coisas minimais. Gosto de explorar as ideias simples. É o que estou sempre a fazer.

Como é trabalhar a partir de uma ideia simples? É natural ou fica obcecado com ela durante anos?
Depende, cada filme é diferente. Nunca é o mesmo processo. Por exemplo, este da mosca gigante escrevi em cinco dias. Tinha o argumento na cabeça e foi muito fácil de o escrever. Outros projetos demoram mais tempo, o “100% Camurça” escrevi primeiro em inglês, mas depois tornou-se num projeto em francês e tive de o reescrever. É sempre diferente.

Como vê a atual situação da Covid-19 a afetar a produção dos filmes?
É complicado… é suposto rodar um novo filme em setembro e ainda estamos a apontar para essa data. É a única coisa que sei. Estamos a tentar filmá-lo em setembro.