São um tesouro literalmente gigante — se empilhados, os cartões registos da Shakespeare and Company quase chegam aos 24 metros de altura — e uma ferramenta de valor incalculável para a compreensão dos escritores da chamada Geração Perdida, que na Paris dos anos 20 do século passado encontraram na livraria parisiense, inaugurada pela americana Sylvia Beach, um reduto para ler e publicar (Ulisses, de James Joyce, por exemplo, foi lançado em 1922 com a chancela da livraria) em inglês.

Durante os anos em que manteve a Shakespeare and Company, que era também biblioteca, a funcionar — em 1941 recusou vender a última cópia que tinha de Finnegans Wake, também de Joyce, a um oficial nazi e foi obrigada a encerrar —, Sylvia Beach manteve registos de todos os livros que vendeu ou emprestou — muitos deles a autores como Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Simone de Beauvoir, Walter Benjamin ou Joyce.

Esses cartões manuscritos, que enchem 180 caixas e se sobrepostos chegariam aos tais 24 metros, foram comprados pela Universidade de Princeton em 1964 mas só em 2014, cinco décadas mais tarde, começaram a ser digitalizados e trabalhados por investigadores. Os primeiros resultados do Shakespeare and Company Project já estão a ser divulgados online e revelam hábitos de leitura de famosos e pessoas comuns. Segundo prometeu ao The Guardian um dos responsáveis pelo projeto, ainda há muito para mostrar.

Sylvia Beach era uma “arquivista meticulosa e obsessiva”, contou Joshua Kotin, professor de Inglês em Princeton. “Só agora é que estamos a desenvolver as ferramentas digitais que nos vão permitir compreender e perceber o potencial do arquivo. Continuo a encontrar tesouros — por exemplo, mesmo antes da pandemia, encontrei um manuscrito do Balé Mecânico (1924) do [compositor] George Antheil, que o próprio Antheil deu a Beach.”

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No site do projeto, é possível consultar as fichas de membro da livraria de cada um dos leitores, famosos ou não, e aceder a informações biográficas — com direito a um mapa de Paris à época, com a morada de residência e localização em relação à Shakespeare and Company. As fichas de empréstimo, preenchidas pelo punho de Sylvia Beach, foram digitalizadas e também estão disponíveis. No dia 20 de abril de 1937, por exemplo, a mademoiselle Simone de Beauvoir requisitou A morte de um herói, o romance sobre a Primeira Grande Guerra que Richard Aldington publicou em 1929, para o trocar apenas dois dias depois por Doctor Martino and Other Stories, de William Faulkner — que só devolveria a 3 de maio, onze dias depois.

Para já, através do Shakespeare and Company Project é possível saber que a intelectual Gertrude Stein tinha os seus guilty pleasures em romances históricos e literatura fantástica. Ou até saber o que Hemingway estava a ler em 1925, quase 30 anos antes de publicar o seu O Velho e o Mar: Sailing Alone Around the World, o livro de memórias de Joshua Slocum, o primeiro homem a fazer sozinho a viagem de circum-navegação, em 1895.

O autor de Por quem os sinos dobram era, na sua época, um dos leitores mais compulsivos, com mais de 90 livros requisitados — durante oito dias, em setembro de 1929, leu o Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence; em 1926, o ano em que publicou O Sol Nasce Sempre e escreveu sobre toureiros e as festas de Pamplona, tomou de empréstimo uma cópia do álbum ilustrado Bull Fighting, de 1904.

“Queremos compreender a genialidade. Será que aquilo que Hemingway leu nos ajuda a perceber o que ele escreveu e por que motivo é tão fantástico? Também é fascinante comparar as nossas práticas quotidianas — o que vamos buscar à livraria local, o que encomendamos na Amazon — com aquilo que as pessoas faziam no passado. E há algo de ilícito em saber mais sobre aquilo que as pessoas liam e como o faziam — estamos a saber mais sobre uma atividade muito privada e solitária”, justificou Joshua Kotin ao jornal britânico.

A icónica livraria, ainda hoje uma das fachadas mais fotografadas de Paris e talvez a livraria independente mais famosa do mundo, conheceu nova vida, noutra morada, em 1951, pela mão de George Whitman, que morreu em 2011, aos 98 anos. Não consta que o segundo proprietário tenha mantido registos como Sylvia Beach.