Eram os primeiros dias de Portugal acossado por uma pandemia, uma doença provocada por um vírus que a ciência não domina, a obrigação da quarentena e do confinamento. Era, para todos os que nasceram depois do 25 de Abril, de 1974, o primeiro “estado de emergência” do resto das suas vidas. Entre a dose massiva de informações alarmistas, comentadores, especialistas, fake-news, séries Netflix, festivais em direto nas redes sociais, aulas via zoom, telescola, havia a iminência de uma catástrofe; daquelas que rompem a ordem e a segurança a que nos habituámos, que provocam derrocadas económicas, sociais e emocionais. Esses dias que foram o início do medo e muita incerteza foram também os primeiros de uma aventura infanto-juvenil bastante séria chamada “Como é Que o Bicho Mexe?”. Uma espécie de “happening” para amigos que tomou a forma de uma comunidade de milhares de pessoas cuja noite terminava com a garantia de um comediante:”vai correr tudo bem”.

Não lhe pudemos chamar talk-show televisivo, pois qualquer semelhança que possa haver entre ambos é pura dificuldade em encontrar as palavras certas. E, sabemos: o que não tem nome, ordem ou classificação é o que realmente comporta uma forma de mudança, aponta perigosamente para um futuro e anuncia que algo já ficou para trás. Na verdade, os diretos de Bruno Nogueira aka @corpodormente no Instagram, não foram mais do que conversas inconsequentes com amigos; uma espécie de gang que, nos intervalos das aulas, se junta no lado de trás da escola, fuma às escondidas e tem vergonha de se aproximar das raparigas. Eram sobretudo conversas de rapazes, com uso e abuso do vernáculo, do escatológico, das fantasias sexuais misturadas com acidentes domésticos e descobertas de homens que dão por si sozinhos, no meio de uma pandemia, com filhos e uma casa para limpar.

Como é que isto pode interessar a alguém, como é que isto pode juntar cerca de 80 mil espectadores espalhados pelas camas e sofás deste país durante dois meses, talvez não seja passível de traduzir em métricas nem em prognósticos de “especialistas em redes sociais”.

Ronaldo na cama, Albano Jerónimo sem calças e mais de 170 mil a ver: foi assim o último “live” de Bruno Nogueira no Instagram

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Ao longo destes dois meses em que, de segunda a sexta, pelas onze da noite, Bruno se sentava, no seu escritório, em frente ao ecrã de um telemóvel, copo de vinho branco na mão, e ia chamando amigos para uma conversa “íntima” em direto com este mundo e o outro, muita coisa aconteceu. Coisas que só acontecem quando as pessoas se juntam para conversar, independentemente do aparato tecnológico que é usado para essa troca comunicativa. Aos poucos, esta intimidade aliada ao mais puro delírio adolescente foi deixando para trás a inanidade dos nossos media, em especial das televisões, a contagem diária dos doentes e dos mortos pela covid-19, as polémicas políticas sobre máscaras sanitárias, as polémicas domésticas sobre rolos de papel higiénico.

E por uma única razão: havia uma coisa nova, mesmo nova para ver acontecer. De repente, era outra vez sábado de manhã, não tínhamos escola e a televisão dava-nos duas horas de desenhos animados. De repente, estávamos outra vez nas férias de verão ou de Natal, o tempo distendia-se, os adultos davam-nos folga e, finalmente, podíamos deixar de fazer de conta que somos bem comportados e obedientes cidadãos. Nestes dois meses, o “Como é que o Bicho Mexe” foi a porta que se fechava ao mundo real para tudo poder acontecer.

Bruno Nogueira, Nuno Markl, Nuno Lopes, Albano Matos, João Manzarra, Salvador Martinha, Beatriz Gosta (Marta Bateira), Jéssica Athayde, Bumba na Fofinha (Mariana Cabral), Inês Aires Pereira eram os brinquedos que ganhavam vida como no conto O Soldadinho de Chumbo de Hans Christian Andersen. Uma vida menos romântica e doce que no conto, é certo, mas, ainda assim, uma fulgurante libertação. Finalmente éramos as crianças que nunca deixámos de ser.

Neste conto, o soldadinho de chumbo e a bailarina eram ambos Nuno Markl, claro, a fazer os mais desafinados karaokes da história, com coreografias que desafiariam a órbita de Olga Roriz. Só quem não adora humor absurdo, por vezes negro, pode ficar imune a esta festa de sermos de novo miúdos e miúdas sozinhas em casa a poder fazer todas as asneiras do mundo. Bruno Nogueira era o maestro sádico da orquestra e da fábula que ia criando e, enquanto ria, engolia vinho branco.

Sem qualquer obrigação de fazer sentido

A novidade e o furor com que este programa nos contagiou podem ter circunstâncias exteriores de peso, como o facto de ter deixado de haver vida noturna, da obrigação de confinamento. Porém, todo o público que escolheu ficar a ver o programa de Instagram de Bruno Nogueira & friends, poderia perfeitamente estar noutras redes sociais, nos muitos canais de televisão, nos filmes da Netflix e da HBO, a ler (e foram tantos os livros e os poemas que nos impingiram nesta quarentena), a jogar Playstation ou a participar em (mais) um desafio do Facebook. O facto é que muitos milhares escolheram ficar ali até à última nota tocada no piano do músico, escritor e cineasta Filipe Melo. Para participar numa conversa trivial sobre a vida sexual de Nuno Markl, para saber detalhes da dieta vegan de João Manzarra, ou da vida conjugal de Jessica Athayde com o ex-companheiro, ou a cantar Grândola Vila Morena enquanto Vhils  esculpia o rosto de José Afonso. Ainda assim, há quem pergunte em bom português: “so what?”

“Because” aquela conversa tinha tudo o que nos falta no nosso audiovisual entregue ao politicamente correto, ao medo de ferir suscetibilidades, à obrigação de ser bem comportado ou fingir ser mal comportado, desde que dentro das devidas regras, claro está. É que a rebeldia fingida é muito difícil de manter adeptos, e a cultura portuguesa está saturada dessa rebeldia fingida que ataca tudo e todos. E, calcule-se essa obrigação de ser o “bom aluno”, de não melindrar ninguém, de ser “fofinho” foi totalmente dispensada destas conversas.

Bruno Nogueira mata o Bicho esta noite: será que o Bicho vai voltar a mexer?

Ora este Bicho, por mais que tenha sido construído sobre um trabalho de atores e que tenha começado como uma reality TV, passou a ser um híbrido, de comédia romântica, sadomasoquismo, teatro, boa música, nostalgia revolucionária, educação da classe operária, monólogos beckettianos sem Godot. Mas, sobretudo, esta era uma conversa picante, daquelas que só se têm em voz baixa com os melhores amigos. Genuinamente nas margens, onde se sabe muito bem o que não se quer ser, o que não se quer fazer, o Bicho de Bruno Nogueira foi a utopia de não viver mais nesse castelo de Elsinore em que se transformou a cultura em Portugal.

Assumidamente mal-criada, num sentido que O’Neill ou Cesariny aprovariam; cheia de palavrões, insinuações, confissões, impudores, tudo dito com aquela descontração que só temos com os íntimos e, ao mesmo tempo, com centenas de pessoas a comentarem, a incitarem, a dizerem piadas, atentos a cada micro-expressão dos participantes, a acrescentarem palavras imbecis ou astutas à conversa, como se estivéssemos todos no mesmo quarto com milhares de emojis a saltarem pelo ecrã fora como numa festa de aniversário. Efetivamente, o que se criou aqui e que os números e as análises racionais e científicas não podem decifrar foi uma coisa pouco racional e pouco científica chamada “intimidade”. Num programa totalmente libertino onde João Quadros mostrou o pénis e Albano Jerónimo mostrou as nádegas, onde (ou)vimos Markl a urinar, soubemos detalhes da depilação de Beatriz Gosta, vimos homens a fazerem declarações de amor uns aos outros sem que nenhum deles tivesse que mimetizar uma performance homossexual.

A grande habilidade de Bruno Nogueira foi saber gerir as conversas, as emoções e os egos deixando sempre um pé na vida pessoal e outro na escuridão da vida privada, sentado na sua cadeira preta como um mestre escola de régua na mão. Aos poucos, já ninguém sabia distinguir no Bicho a verdade da mentira, o real da simulação. E era fácil ver no correr dos comentários como havia tanta gente que acreditou que Bruno estava mesmo a fazer bullying ao apresentador João Manzarra, que este sofria realmente por nunca agradar ao mestre, houve quem se indignasse quando Bruno tirava um amigo da emissão em direto, cortando-lhe abruptamente a ligação, que o chamasse de infantil ou mal-educado. E hoje haverá por esse Portugal fora muitas meninas casadoiras agora a sonhar com um Markl, carente e frágil como uma carochinha à janela em busca do João Ratão.

Onde é que a promessa do digital falha?

Os diretos do Instagram são bastante conhecidos e usados por celebridades, wannabes, influencers. Acontece que Bruno Nogueira usou esta ferramenta de forma bastante peculiar, a saber: no estilo de linguagem usado, nas fontes ou convidados, na forma como distribuía o jogo, ou seja, as conversas, os temas, os protagonistas, na análise que ia fazendo “on time” de como estava a correr o programa a partir dos comentários dos internautas, daquilo que cada amigo acrescentava (ou não) à conversa. O tempo era curto e não havia espaço para tretas,  quem infringisse a lei ia “de cona”, provavelmente a palavra mais repetida nestas noites onde se media a mestria de cada um na arte de improvisar.

À pressão dos comentários e dos convidados, Bruno comportava-se como um monarca despótico; ali era ele que mandava, que dirigia o rumo das conversas e que mantinha ou tirava do ar um amigo ou amiga sem contemplações. Como ele lembrou muitas vezes: estou a fazer isto porque me apetece, não estou a ganhar um cêntimo, portanto quem está mal “vá de cona”; uma frase que entrou para ficar na língua portuguesa.

Bruno Nogueira e a reinvenção do late night nos tempos da quarentena

Isto leva-nos a outra questão importante; o financiamento. Assistir a um direto no Instagram não tem custos, em princípio não havia dinheiro envolvido, mas, à medida que as audiências iam subindo o assédio das marcas ia crescendo, utilizando o bom e velho estilo influencer: “eu ofereço-te tu promoves-me”. Bruno resistiu à tentação, não promoveu ofertas a não ser as mais excêntricas como as de uma Sex Shop que enviou uns “pipis” aka vaginas de borracha. As contribuições passaram a ser monetárias e destinadas a várias instituições sociais e angariaram-se valores consideráveis, sem ser preciso recorrer ao discurso prosélito tão caro aos tugas do “ coitadinho”.

Num tempo em que se vive segundo o mote “quem me vende meu amigo é”, este gesto de liberdade, e recusa das ofertas de produtos de marcas foi, no mínimo, exemplar. De repente, o novo grande influencer português recusa ofertas, promoções, entrevistas e oferece-nos o seu tempo e o tempo dos seus amigos, não tanto para nos “entreter” (palavra triste), mas para nos fazer companhia.

O prazer das palavras e dos palavrões

As verdadeiras mudanças são sempre graduais e quando se tornam visíveis é porque algo determinante já aconteceu. Hoje vivemos o digital como se fosse o início de uma nova civilização, como se o humano não permanecesse antigo. Mas o humano continua a necessitar de criar ambientes, bolhas afetivas, afinidades eletivas, experiências com significado, surpresa, fidelidade, compreensão profunda. E tudo isto aconteceu no Bicho do Bruno Nogueira. Não vestindo o fato e gravata do “vamos ser sérios” mas, usando o melhor vernáculo que a língua portuguesa produziu, disseram-se, de forma disparatada e oblíqua, coisas muito sérias.

Está comprovado que há mais a aprender sobre o mundo, a política e a liberdade ou o amor numa conversa sobre a vida sexual de Nuno Markl ou de João Quadros do que na grande maioria de programas de debate televisivos, porque a vida, como o vinho, é para ser bebida devagar e não engolida como uma cerveja. Ora todo o audiovisual atual parece apostado, como lembra a estudiosa dos média Barbie Zelizer, “na acumulação de tecnologia, interatividade, distração, espectáculo” e não na criação de conteúdos “independentes, bem escritos, abertos ao acaso, com senso de risco”.

É evidente que feito numa televisão ou numa rádio como todo o seu compêndio de regras, patrocínios, planos de câmara estudados ao milímetro, com toda a sua estúrdia e cenários que recriam as salas de estar enfadonhas e tristes, este excêntrico “Como é que o Bicho Mexe?” seria provavelmente um longo bocejo. A sua essência e o seu charme experimental vinham dos planos de câmara ditados pelas circunstâncias (como se uma paródia propositada às reportagens da CMTV), má rede de internet, emissão desligada ao fim de uma hora de direto e religada a seguir, problemas de som, falta de iluminação, João Quadros a beber whisky pela garrafa a discorrer melancolicamente sobre a falta de sentido da vida como um Bukowsky perante o ar assustado de Bruno Nogueira, sempre excelente no improviso até ter João Quadros à frente.

Afinal tudo era tão perfeito como a nossa vida imperfeita. E quando se aproximava a uma da manhã, já havia quem implorasse por mais uma hora, ou mais uns minutos. O que é que o Bicho teve que não se explica? A vida real. Esta de todos nós, a nossa vidinha, com os seus maiores ou menores dramas, sem 4G, nem maquilhagem, com o desconhecido, as derrotas e as fragilidades à porta. Sem piscinas, hotéis, poses e brunches, e sem os “não sei quê modernos”, sem o simulacro de uma felicidade de plástico e com todas as angústias de um Álvaro de Campos, que sobreviveu à pneumónica e continuou a sua vida de anónimo transeunte numa nas ruas da Baixa, para quem ouvir o Esteves da Tabacaria era uma forma de o mundo se lhe reconstruir sem ideal nem esperança.

Bruno Nogueira e o seu gang foram, durante dois meses, o nosso Esteves, pelo qual vamos esperar ainda que, todas as noites, venha reconstruir o nosso universo sem ideal nem esperança.