Nasceu no Canadá, o pai era norte-americano, a mãe era francesa. Se para qualquer pessoa esta mistura de culturas e nacionalidades já levantaria questões identitárias, tudo se torna mais complicado quando é preciso escolher um de três países para defender. Como tenista, Mary Pierce tinha de escolher uma bandeira — e não podia agradar a todas as frentes e dizer que era canadiana mas filha de pai nascido nos Estados Unidos e mãe natural de França. Escolheu, já enquanto profissional, a bandeira e a nacionalidade francesas. E esse rótulo, em conjunto com muitos outros, acompanhou-a durante a toda a carreira: mas mais porque tentavam descolá-lo do que propriamente fechar a tenista nessa caixa.

Ironicamente, ou simplesmente porque nada acontece por acaso, a história de Mary Pierce está intimamente ligada a Roland Garros, o Grand Slam francês que começa sempre no final de maio mas que este ano foi adiado para setembro devido à pandemia. Roland Garros, o paraíso da terra batida, deveria ter arrancado este domingo, dia 24: e esse é um motivo mais do que suficiente para recordar um dos melhores momentos da história do torneio francês.

Com uma vitória no Open da Austrália na bagagem, em 1995, Mary Pierce chegou ao Roland Garros de 2000 com 25 anos e no sexto lugar do ranking WTA. Depois de ultrapassadas as rondas iniciais, cruzou com Monica Seles, então número 3 mundial, nos quartos de final. Durante um set particularmente disputado, a norte-americana estava a desgastar Pierce, obrigando-a a correr de um lado para o outro do court. Numa pancada mais puxada, a francesa calculou mal a velocidade e a distância e acabou por colocar-se na rota da bola: saltou, quase como uma bailarina, e bateu a bola pelo meio das pernas. Monica Seles só viu a bola passar-lhe por cima da cabeça e bater ainda dentro do court, num dos pontos mais brilhantes que Roland Garros alguma vez testemunhou.

[A histórica pancada de Mary Pierce está a partir do minuto 1:03]

Mary Pierce venceu Seles, derrotou a número 1 do mundo, Martina Hingis, nas meias-finais, e conquistou Roland Garros ao anular Conchita Martínez na final. Foi o segundo Grand Slam da carreira da tenista francesa — que nesse mesmo ano também venceu em doubles, em par com Hingis — e seria o último, já que depois disso só voltou a disputar uma final (no US Open, em 2005, onde perdeu para Kim Clijsters).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A história de Mary Pierce, porém, cruza sempre com a do pai, Jim Pierce. Principal instigador da carreira da filha, conseguiu torná-la na norte-americana mais nova de sempre a ser profissional, com apenas 14 anos — isto numa altura em que a tenista ainda competia sob a bandeira dos Estados Unidos –, mas foi o protagonista de diversos episódios polémicos. Jim criticava abertamente os adversários da filha, envolvia-se em confrontos com os pais dos opositores durante os torneios juvenis e repreendia Mary em público quando as coisas não corriam da melhor maneira. Com a subida de Mary Pierce ao patamar profissional, o comportamento de Jim tornou-se um dos principais atrativos da comunicação social que cobria ténis. Em 1992, em Roland Garros, o pai da tenista foi expulso do recinto depois de agredir dois adeptos — algo que acabou por motivar a criação da “regra Jim Pierce”, que permite que parte do staff de um tenista possa ser expulso de qualquer evento. Jim, por si só, foi banido de todas as competições de ténis no ano seguinte.

Ténis prolonga suspensão até 31 de julho

Ainda antes de acabar a carreira, Mary Pierce cortou relações com o pai e chegou a pedir uma ordem de restrição. A medida extrema, porém, de pouco ou nada resultou: Jim continuava a viajar para todos os locais para onde a tenista se deslocava, ficava nos mesmos hotéis e chegou a agredir os seguranças que Mary contratava para manter o pai à distância. A tenista acabou por contar toda a história à Sports Illustrated, num artigo histórico com o título “Por que é que Mary Pierce teme pela vida”, e revelou que foi vítima de violência física e psicológica. Terminou a carreira em 2006, depois de uma lesão, e há alguns anos contou em entrevista que perdoou o pai antes de este morrer, vítima de cancro, e que decidiu salvar a relação dos dois depois de se ter aproximado da religião e da fé.

Há 20 anos, Mary Pierce saltou e ganhou um ponto com uma pancada entre as pernas que raramente foi repetida de lá para cá. Mas na semana passada, em entrevista ao Le Figaro, garantia que ainda ninguém tem bem a certeza se a tenista é canadiana, norte-americana ou francesa. “Joguei três finais. Que representante francês fez isto na história do ténis moderno? Mesmo hoje, sinto que não sou aceite como Mary, a francesa. Não consigo entender”, explicou, agora com 45 anos e a viver nas Maurícias.