Título: O Eremitário da Cartuxa de Évora. Arquitectura e vida monástica
Autor: Luís Ferro
Edição: Canto Redondo
Fotografias: Rodolfo Pimenta, Fernando Jorge, Gonçalo Pôla
Páginas: 141, ilustradas, hardcover

A capa de “O Eremitério da Cartuxa de Évora: arquitectura e vida monástica”

O encerramento do mosteiro da Cartuxa de Évora em Outubro do ano passado foi acompanhado por boas e inspiradoras atenções à vida monástica ali discretamente prosseguida às portas da cidade alentejana desde fins do século XVI, mas este livro de Luís Ferro — distinguido pelo prémio literário Frei Bernardo Domingues 2019 — publicado em Fevereiro deste ano por nova e pequena editora da Amadora não será certamente a menor delas. O fascínio de literatos e gente das artes por espaços de reclusão espiritual com regras muito antigas é compreensível e justificável, mas o entendimento da grande maturidade estética que está na origem destas imponentes mas austeras construções não o é menos. Daí que o estudo da sua arquitectura — melhor dizendo, a diacronia histórica da arquitectura de diferentes e sucessivos mosteiros erguidos pelos seguidores de São Bruno — seja chave-mestra para entrar neste pequeno mundo de eremitismo e silêncio, simplicidade, pobreza e disciplina, inspirado na sua origem por uma caminhada no longínquo ano 1085 adentro de “um bosque ermo situado num vale de difícil acesso rodeado por montanhas” nos arredores pré-alpinos de Grenoble, o vale francês de Chautreuse (Cartuxa em português).

Caminhar é tido pelos eremitas como um exercício fundamental, em memória de São Bruno e dos seus seis companheiros, e a organização espacial dos mosteiros cartuxos — criando “desertos monásticos” — tem isso em mente, “sublinhando a ritualização deste encontro com a natureza, os seus irmãos e a memória da Ordem” (p. 25). Por outro lado, a clara separação cartuxa entre vida contemplativa dos padres e vida activa dos irmãos determina a especificidade destas construções face às congéneres de outras ordens religiosas. Luís Ferro também esclarece que “apesar da rigidez da regra, é intensa a individualidade de cada mosteiro” (p. 33), levando o autor ao contraste entre o eremitério de Santa Maria Scala Cœli (Évora, construído de 1587 ou 1593 até 1602 ou 1625 ou 1638; v. p. 106) com o de Port-Sainte-Marie (1219), o mosteiro-tipo cartusiano, mas também com o de Santa María de Montalegre (1286) e sobretudo com o de Santa María de El Paular (1390), nos arredores de Madrid, e não apenas para a grande construção em si mesma, adaptada à geografia, orografia, técnicas construtivas e clima locais, mas também ao plano das celas-tipo, onde se entra pelo claustro grande, constituídas por vestíbulo, sala da avé-maria, oratório, quarto de leitura e quarto de dormir (v. figs. pp. 39, 55). Abertas a um pequeno pátio ajardinado voltado a sul, apesar da sua dimensão reduzida são núcleos habitacionais espacialmente sofisticados, com luz natural, função e ambientes diferenciados, “de modo a que o monge mantenha um equilíbrio físico e mental” (p. 52). Paredes espessas e um “sótão das telhas” isolam sabiamente o rés-do-chão de temperaturas e ruídos externos. Salamandras sob modelo da Grande Chartreuse e fabricadas na cidade aquecem como podem as salas ditas da avé-maria.

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Entramos nesses espaços individuais despojados também através de fotografias a preto e branco muito carregado que sublinham a reclusão monacal, onde “há o mobiliário necessário para um mínimo de conforto” (p. 61), condição que não melhora sequer nas celas especiais do prior (que tem capela em vez de oratório), do sacristão e do vigário, que se distinguem daquelas apenas por uma disposição invertida, cúpula no tecto do oratório e o primeiro andar aproveitado como terraço.

Mas esta descrição simplificada oculta a ainda controversa autoria do projecto de arquitectura, discutidíssimo entre historiadores de arte como Miguel Soromenho, Vítor Serrão, Susana Mendes e Túlio Espanca, entre outros, com base em documentação portuguesa e espanhola, e que Luís Ferro expõe com pormenor, sem preferir qualquer uma delas. Embora reconheça que o desenho do arquitecto espanhol Francisco de Mora (1553-1610) apresenta “semelhança particularmente visível” no eremitério que hoje ali encontramos (p. 100), a intervenção posterior do engenheiro militar italiano Giovanni Vincenzo Casale — falecido enquanto decorria a construção —, aprovada pelos donos da obra, sofreria ainda “inúmeras discordâncias” pela mão de Nicolau de Frias, Pedro Vaz Pereira e Jerónimo Torres, dois arquitectos e um mestre de obras particularmente ligados ao arcebispo eborense e à Casa de Bragança, como comprova documentação arquivística que o segundo incansável Serrão desencantou para artigo incluído num número monográfico da revista Monumentos, em 1999, e que certamente serviu de estímulo ao autor para a sua dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Évora dez anos depois (2009), de que este livro de 2020 é uma destilação meritória.

A história convulsa deste edifício e comunidade religiosa — “liberdade de dentro vs. prisão de fora”, de acordo com palavras do seu prior — está bem longe de se condensar na verdadeira autoria da sua concepção: ocupado durante assalto a Évora pelo exército de D. João de Áustria em 1663; encerrado pela extinção das ordens religiosas de 1834, e doravante “forçado a utilizações pouco duradouras que gradualmente foram destruindo o edifício” (p. 108); comprado por José Maria Eugénio de Almeida em 1871, que transformou o antigo deserto monástico em campo agrícola, instalou o centro da lavoura no mosteiro em ruína e deu a tudo isso a designação de Quinta da Cartuxa; até que seu neto Vasco Maria, conde de Vill’Alva (1913-75), um engenheiro agrónomo, empreendeu com particular envolvimento pessoal, de 1942-48 a 1960, uma extraordinária reabilitação cujo processo aliás documentou fotograficamente; e por último, foi a hoje extinta Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais a recuperar (e adulterar…) alguns espaços em avançado estado de degradação de 1995 a 1999, ano em que essa campanha se traduz — como fizera com várias outras intervenções no país — na publicação do referido número da sua revista Monumentos. A campanha levada a cabo pelo conde de Vill’Alva, durante uma dúzia de anos, é altamente estimada por Luís Ferro como uma “refundação” (p. 119), ou “ressurreição” (p. 129), embora não se livre da crítica de não ter sido guiada pelos planos originais de Vincenzo Casale e por usar de excessivo pragmatismo na reconstrução de paredes em ruína.

Dedicando as páginas finais do seu livro ao devir da maior parte das construções conventuais cartuxas — 22 mosteiros activos, 130 outros, ora destruídos ou convertidos a funcionalidades as mais diversas, algumas bem distintivas, imaginando talvez o que em Évora possa vir a seguir —, o autor acaba por fazer coincidir o modelo de São Bruno com o Alentejo, “uma vez que a paisagem e a arquitectura alentejanas, pela sua fisionomia e estética, já evocavam os princípios cartusianos de simplicidade e sobriedade antes dos monges brancos chegarem” (p. 112). Saídos os monges e os irmãos, fica ainda e sempre o espírito dum lugar…