O advogado Jorge Neto Valente tem escritório em Macau há mais de 40 anos e foi logo no início da sua aventura no Oriente que conheceu Stanley Ho, o magnata do jogo de Macau que morreu esta terça-feira, aos 98 anos.

“Conheço-o há mais de 45 anos, quase 50. De um tempo em que Macau era pequenino e, portanto, as pessoas conheciam-se todas umas às outras, encontravam-se. E o Stanley Ho organizava eventos, para os quais convidava uma certa camada social em que se enquadravam os portugueses”. Jorge Neto Valente tinha chegado ao território como oficial do Exército português e montado um pequeno escritório de advocacia.

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“Não sei porquê ou quem lhe falou de mim, mas despertei o interesse dele”, contou ao Observador o agora presidente da Associação de Advogados de Macau. “E um dia recebi um recado de um amigo dele que sabia que eu era advogado. E o recado era a oferta de uma avença para trabalhar para ele, em assuntos da Sociedade de Turismo e Diversão de Macau”, recorda.

Jorge Neto Valente lembra-se que perguntou ao amigo que trazia a mensagem a razão de ser de tudo aquilo. “Mas para que quer o Stanley Ho mais um advogado? Ele já tem advogado e, ao que sei, trata-lhe de tudo o que é preciso”. A resposta foi curta e clara, disse o advogado.

Black and white photo of Stanley Ho with relatives of Fatshan's crew. Fatshan was a Macau-Hong Kong ferry that capsized off Lantau Island when Typhoon Rose hit the territory on 17 August 1971.

O então empresário Stanley Ho com familiares das vítimas de um acidente de ferry, em agosto de 1971.

“Não é para trabalhar. É só para ser avençado. Aliás, há muitos outros advogados que recebem”. Jorge Neto Valente respondeu que tinha como princípio não aceitar dinheiro sem trabalhar. E explicou a maior razão por detrás da recusa (mas também da oferta).

“Receber dinheiro nessas circunstâncias seria perder a minha liberdade, porque não poderia aceitar nenhum caso contra as empresas do senhor Ho. Também não estou a dizer com isso que estou a pensar mover uma perseguição à Sociedade, mas não tenho de receber uma avença”, recorda o advogado.

“E em boa hora o fiz, porque na primeira oportunidade ele disse-me que eu tinha ganhado o respeito dele. E trabalhei depois com ele em muitos projetos e até hoje foi um homem que me merece a maior admiração”, contou ao Observador.

A tática de Ho era preventiva: tinha olheiros que identificavam potencial. Se pudessem ser amigos, melhor, mas pelo menos que não viessem a constituir ossos duros de roer lá mais para a frente. Aliás, conta o advogado, Stanley Ho apenas antecipou em muitos anos uma prática que ainda diz ser corrente. “É o mesmo que fazem hoje os bancos. Fazem-se clientes dos escritórios de advogados, que lidam com os bancos em alguns negócios, documentação etc, o que depois os impede de aceitarem casos contra estes bancos. O Stanley Ho fez o mesmo, mas muito antes, porque era um visionário”, salienta.

HONG KONG'S MULTIMILLIONAIRE AWARDS

Ho numa gala do Prémio dos Milionários de Hong Kong. O magnata tinha queda para a dança, sobretudo tango e valsa, relembra Jorge Neto Valente.

“Ele sentiu que eu era jovem, ‘tuga’ e que iria subir na vida. O que aconteceu. E ele sabia que ‘arranjar inimigos só se for mesmo necessário’”.

Ao longo dos anos, Jorge Neto Valente acabaria por estar em muitos projetos com Stanley Ho. “Trabalhei com ele, sim. Com ele, fiz parte dos órgãos sociais de várias empresas. Ele por vezes pedia-me para integrar os conselhos de administração, para ser o elemento de desempate. E mesmo quando ele não podia ser o presidente do Conselho, não se importava de estar lá, presente na administração, onde a sua voz era sempre escutada”.

Para o veterano advogado, Stanley Ho poderia ser descrito como “um homem tenaz”, mas que sabia a forma exata de evitar o confronto. Um empresário que estava sempre muito bem informado e que sabia tirar partido desse conhecimento.

“Ele sabia muito bem o que queria e como o iria conseguir. Foi conselheiro de vários governadores… Pela natureza das posições que ocupava era uma pessoa com muitíssima informação. E nunca atuava com estardalhaço, evitava sempre o confronto público”.

Como? Ho preparava sempre o ambiente para que as pessoas andassem num determinado caminho, que era o que ele queria. “Tal como um bom jornalista, ele sabia que ‘informação é poder e guardada ainda é melhor’. Sabia digerir essa informação e aproveitar-se dela”.

Stanley Ho na pista de corridas de Sha Tin, em Hong Kong, em fevereiro de 2008.

Ainda assim, conta Jorge Neto Valente, há um antes e um depois do acidente caseiro que Stanley Ho sofreu, há 10 anos. “Aos 88 estava completamente lúcido. Falei com ele na véspera do acidente e ele estava completamente lúcido”, contou Jorge Neto Valente. “Ele caiu em casa e bateu com a cabeça num degrau ou no chão, não se sabe bem, e fez um hematoma. Mas levantou-se e foi dormir”.

Foi a sua mulher na altura, que tinha alguma formação de enfermeira, quem achou que ele tinha qualquer problema. “Convenceu-o a ir ao hospital, onde ele fez uma ressonância e os exames deram que ele tinha uma hemorragia. Fizeram-lhe uma trepanação para aliviar a pressão [no crânio], mas ele nunca mais recuperou a 100%”, assegura.

Quando Ho fazia anos, em novembro, organizava sempre um almoço chinês “com mais de uma centena de amigos, talvez chegasse aos duzentos”. “E nos últimos anos – desde há cinco anos a esta parte – a saúde deteriorou-se e ele já aparecia em cadeira de rodas. Aliás, a casa dele já parecia um hospital, com equipamento e um sofá daqueles articulados. Estava já na rampa descendente”, conta o advogado.

O magnata de Hong Kong e Macau Stanley Ho durante a sua festa de aniversário de 2012.

Jorge Neto Valente elogia a pontualidade de Ho – “nunca o vi chegar atrasado para nada, reuniões importantes ou eventos menos importantes – e um “pé leve” para a dança.

“As danças chinesas não. Tangos e valsas. Tinha um pé leve e a dança punha-o em contacto com as jovens raparigas que ele muito apreciava. Era um bom bailador. Aliás, conheceu a quarta mulher ao dançar”, diz, entre risos. Também nadava todos os dias e jogava ténis ocasionalmente “pelo menos enquanto tinha saúde”.