O cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima e vice-presidente da Conferência Episcopal, deixou esta semana duras críticas à ala mais conservadora da Igreja Católica — sobretudo aos que se opõem às normas de higiene para o regresso das missas comunitárias, nomeadamente à proibição de receber a comunhão diretamente na boca.

O próprio Jesus disse ‘tomai e comei’. Tomai. Não disse ‘abri a boca’. ‘Tomai e comei, tomai e bebei.’ O gesto de Cristo é expressivo“, disse o cardeal numa entrevista ao podcast Ponto de Viragem, do portal dos jesuítas Ponto SJ.

As declarações de D. António Marto surgem na mesma semana em que foi conhecido um apelo, assinado por 500 católicos, entre leigos e sacerdotes, enviado aos bispos portugueses, mas também ao Vaticano, no sentido de que seja levantada a proibição de receber a comunhão na boca.

Na opinião dos subscritores da petição, a proibição — determinada pela Conferência Episcopal para prevenir o contágio da Covid-19 nas missas católicas — “atenta gravemente contra as normas da Igreja Católica e, por conseguinte, contra a reverência devida ao santíssimo sacramento“.

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A petição lembra também posições anteriores da Igreja Católica, nomeadamente por altura do surto de H1N1, segundo as quais a regra de não negar, aos fiéis que pretendem receber a hóstia na boca, essa possibilidade nunca deve ser quebrada, “nem mesmo em tempos de epidemia, à semelhança do que aconteceu com o H1N1, altura em que a referida Congregação para o Culto Divino o confirmou em resposta a múltiplas cartas que fiéis de todo o mundo lhe dirigiram”.

Para o vice-presidente da Conferência Episcopal, contudo, este argumento não tem em conta a excecionalidade do momento atual. Salientando que, embora 500 subscritores não representem uma realidade “muito significativa” na Igreja, aqueles católicos “têm direito a ter a sua opinião“, D. António Marto lamenta que haja fiéis mais tradicionalistas a pôr “em questão a própria fé dos bispos“.

“Há tanta sujidade às vezes nas bocas”, disse o cardeal. “Às vezes vejo mãos calejadas a receber a sagrada hóstia e fico comovido. São mãos de trabalho, de sacrifício, de doação à família, de doação aos outros. Mãos às vezes de santos e santas. Porventura mãos santas. Porque é que havemos de dizer que há de ser só na boca?“, questionou.

O cardeal lembra que a “divergência de opiniões” dentro da Igreja Católica não é novidade, mas sublinha que é preciso que os católicos sejam “racionais” e se mostrem “responsáveis”.

“Todas as medidas que a Conferência Episcopal tomou e indicou, todas elas foram dialogadas com as autoridades do Estado e com a DGS”, garantiu D. António Marto. O bispo de Leiria-Fátima deu mesmo o exemplo concreto do que aconteceu em Fátima no 13 de Maio, que, pela primeira vez, ocorreu sem peregrinos fisicamente presentes.

“As pessoas não podem pensar que fiz isso de ânimo leve”, disse Marto. “Quando foi posto em causa se se havia de fazer, por causa das declarações da ministra da Saúde, que num primeiro momento foram ambíguas, aqui choveram centenas de mails a querer que a Igreja manifestasse a sua posição firme. Se os outros fazem, nós também devíamos fazer.”

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Porém, o cardeal optou por manter a decisão privilegiando “o bem comum, a dignidade da pessoa humana e o imperativo moral de salvar vidas”. “Como dizia o Papa Francisco, era preciso colaborar com os responsáveis pela saúde pública e respeitar as indicações que nos davam para isso“, considerou D. António Marto.

O cardeal lamenta ainda aquilo que descreve como “uma bulimia dos ritos e a anorexia da palavra”. Ou seja, “a sofreguidão, o apetite sôfrego de consumir ritos, e a falta de apetite para a palavra de Deus“, que encontra em alguns setores da Igreja Católica.

D. António Marto é bispo da diocese de Leiria-Fátima desde 2006. Em 2018, foi nomeado cardeal pelo Papa Francisco. É apontado como provável sucessor do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, uma vez que Clemente termina este ano o segundo mandato à frente do organismo central da Igreja Católica em Portugal, não podendo ser reeleito.