Tudo recomeça com um passo antigo. Não se pode simplesmente aparecer à porta do cinema e escolher o que apetece ver na próxima sessão; é preciso reservar previamente, e com lugares marcados, como dantes, como sempre se pôde e há gente que ainda faz, mas de que a maioria se desabituou porque ganhou horror ao compromisso e prefere deixar todas as decisões para “o momento”, “a vontade”, “o que apetece”. E nós, que sempre cultivámos o distanciamento social na sala e sempre optámos pelas filas da frente para não ter gente nem ruído nem cheiro de pipocas nem luz de telemóvel entre nós e o filme, pedimos o lugar do meio da última fila da plateia – porque hoje, especialmente, precisamos de ver o filme e quem o está a ver.

O lugar já está ocupado, respondem-nos por email, minutos depois. Temos uma vaga sessão de grandeza: os dias de ouro do cinema estariam de volta? Uma sala cheia, 10 horas antes da sessão, numa segunda-feira? Seriam os junkies do cinema, como nós, os agarradinhos do grande ecrã, a ressacar há quase três meses e a não aguentar mais, a correr todos para o cinema Ideal, no Chiado, para ver o que quer que lá estivesse? Apetecia-lhes o “Carnificina Total 3”, mas o que há é o “Retrato de uma Rapariga em Chamas”? Seja! O que vier, morre! Precisamos é daquela grandeza do telão outra vez, da textura dos rostos esmagadores no grande plano, de desaparecer no interior do filme, qualquer filme…

E daí talvez não. Talvez seja apenas aquele lugar especificamente que já esteja ocupado, a pedido de alguém legitimamente preocupado em não ter ninguém atrás que lhe tussa em cima. Ou ainda mais desinteressante: outro jornalista qualquer que teve a mesma ideia – primeiro.

Oferecem-nos em alternativa o lugar do meio da última fila do balcão – e nós aceitamos, triunfantes. Toma lá, ó hipocondríaco espertalhão. Vai buscar, coleguinha apressadote. Vencemos! Temos um lugar ainda mais atrás! Vamos ver ainda melhor toda a gente! Em cima de nós é que ninguém tosse!

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Trinta minutos antes da hora marcada, atravessamos uma cidade que pode já acontecer medianamente de dia, mas que à noite desaparece. A capital portuguesa quase não respira abaixo do Marquês de Pombal. É verdade que é segunda-feira, é verdade que o tempo está a mudar, mas a noite ainda é quente e desconfinamento a palavra do mês. Há-de ser uma mistura entre o medo e uma cidade que, para o bem ou para o mal, se converteu ao turismo – à medida que descemos para o rio, mais habitada é por estrangeiros de passagem – e agora, portanto, desabitada.

O Ideal, que é o mais antigo cinema da capital em atividade e que já teve muitas vidas, algumas delas impróprias de expor aqui neste jornal familiar, é assim uma das poucas portas abertas na velha Rua do Loreto. O único ligeiro amontoado de gente avistado num percurso, outrora, sobrelotado.

Ao todo, seremos cerca de 34. Nada mau. A dois ou três lugares do máximo de capacidade que o Ideal está a aceitar – um terço da sala. A início, parecemos mais, porque há jornalistas a filmar, fotografar e entrevistar quem entra, como se, de repente, ir ao cinema, fosse qualquer coisa extraordinária, arriscada, astronautas partindo para a Lua, domadores prestes a enfiar a cabeça na boca do leão.

E nisto ocorre-nos que estamos aqui no mesmo papel… Mas o jornalista escrito é um sonso e a discrição da função permite-lhe passar apenas por “pessoa”, “popular”, “motivo de reportagem”. O repórter de imagem, esse, nunca pode fingir o snobismo do desinteresse. A maquinaria não lho permite.

E aqui estamos todos de máscara à espera que o filme comece. Todos a tempo e horas à espera que o filme comece. Há quanto não acontecia? Aperaltarmo-nos e preocuparmo-nos em chegar à sala com antecedência? Levantar o bilhete e ir para o nosso lugar marcado? Em vez de entrar à pressa, já durante as apresentações, e sentarmo-nos às escuras no primeiro lugar razoavelmente livre e bom que vislumbrássemos, entre pares de joelhos e bacias de pipocas?

Todos de máscara como se fôssemos a uma enfermaria de filmes, receber uma metadona de fita. Todos de máscara como se fôssemos nós as personagens. A máscara do Zorro, a máscara do Homem de Ferro, a máscara do Joker, a máscara do Guy Fawkes, a máscara para Hannibal Lecter que não morder, a máscara de hóquei do “Sexta-feira 13”, a máscara do “Scream”, a máscara do Homem-Aranha, a máscara do Batman, a máscara do Máscara, as máscaras de “Eyes Wide Shut”, ou tudo tão menos interessante, quase apenas e só máscaras cirúrgicas que um aspirante a cómico tira e bamboleia no ar à laia de peça de strip, assim que as luzes se apagam, e que apetece esbofetear, mas que, depois, milagrosamente, se comporta.

E todos, quase todos, nas filas de trás. Na plateia ou no balcão. Porque, afinal de contas, tiveram todos a mesma ideia. Como aquelas pessoas que se chegam para trás no baile, com medo de que alguém as chame para dançar. Todos escondidos atrás uns dos outros, como se o perigo viesse afinal da tela, de uma personagem poder tossir ou espirrar para o lado de cá do ecrã.

Respiramos fundo. Há muito tempo que vir ao cinema não parecia uma coisa tão solene, mas nunca tinha parecido uma coisa perigosa. A sala de cinema sempre foi para o amante da sétima arte a hipótese quotidiana da quarentena, do confinamento, do isolamento, da suspensão do mundo. Sempre foi o refúgio, a segurança, o colocar momentâneo da vida em repouso para viver outra coisa qualquer. Hoje, pela primeira vez, quando sete das 34 pessoas estão sentadas na última fila, a sala de cinema permite que pensemos por um momento se será segura. Se, por uma vez, não será a evasão. Mas, depois, o filme faz o seu trabalho – e leva-nos com ele, leva-nos a esquecer.

Acerca dele, de “Retrato de uma Rapariga em Chamas”, já se fez aqui, em devida altura (ali mesmo antes do fim do mundo), a crítica – não cabe agora voltar a analisá-lo. Mas tem um tempo que se coaduna com o que vivemos. O tempo da pintura. Que é um tempo de espera, um tempo de observação, um tempo de estudo, um tempo de silêncio (em que percebemos a sala inteira em silêncio, durante duas horas, os 34 – até o stripper da máscara cirúrgica – afinal, éramos mesmo todos junkies. Estávamos mesmo todos a ressacar. Estamos mesmo agora todos aqui sossegadinhos porque, finalmente, nos deram um bocadinho de fita para acalmar). O tempo em que não temos pressa para as coisas triviais. Esperamos que a resposta se desenlace, se desvele, e venha à luz, revelando enfim o rosto que queremos beijar (assim permita a DGS).

O cinema está de volta. Devagarinho. Com aquele ar de coisa séria que merece. Na nobilíssima tarefa de nos tirar daqui. Boas sessões.

Alexandre Borges é escritor e argumentista