“Mexe-te”, “atenção ao posicionamento” e outras expressões piores são agora bem audíveis a quem assiste aos jogos de futebol pela televisão. De repente, os estádios com milhares de cadeiras estão sem público e um jogo entre dois clubes da Primeira Liga parece um encontro dos campeonatos distritais, onde estamos habituados a ouvir as indicações dos treinadores e as trocas de argumentos entre jogadores de equipas adversárias. Com os estádios sem adeptos, os jogadores e os treinadores tiveram que se adaptar a uma nova realidade.

O técnico do FC Porto, Sérgio Conceição já disse que “não estava preparado para uma diferença tão grande” ao ter que jogar com um estádio vazio e Rúben Amorim, treinador do Sporting, assegura que prefere “um estádio contra a equipa ou contra a direção do que um estádio vazio”. Mas para além dos protagonistas mais “mediáticos”, também outra equipa: a de arbitragem. Essa assegura que “prefere jogar num estádio cheio”, apesar das palavras pouco simpáticas que os adeptos habitualmente lhes dirigem.

[Jogo de Cabeça – Até os árbitros têm saudades de bancadas cheias. Ouça aqui]

Até os árbitros têm saudades de bancadas cheias

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao Observador, o ex-árbitro internacional João Capela garante que “os árbitros gostam de estádios cheios”. Todo o ambiente que envolve o futebol afeta de forma positiva todos os intervenientes“, até mesmo os que são habitualmente alvo dos insultos por parte dos adeptos da equipa da casa. Apesar de admitir que “há momentos do jogo, numa substituição ou num momento de paragem, em que se sente a diferença”, na globalidade do encontro “nem se dá pela diferença”.

Apesar da mudança de “chip” que os árbitros alegam ter quando se dá o apito inicial, o psicólogo do desporto Jorge Silvério diz que “os árbitros não deixam de ser seres humanos, em que o ambiente acaba sempre por influenciar”. “Um dos fatores que explica a vantagem de jogar em casa é a pressão que os adeptos fazem sobre os árbitros e não existindo essa pressão os níveis de concentração têm que estar mais elevados”, refere. Ainda assim, “ter na cabeça o que pode acontecer durante o jogo deixa os intervenientes mais preparados”, adianta o especialista em psicologia desportiva.

“Infelizmente há jogos profissionais que têm poucas pessoas”

Em Portugal há uma “preparação habitual” para jogos sem público e que é dada de forma natural pela fraca assistência em muitos dos encontros dos clubes da primeira liga. Esta temporada só Benfica (75%), FC Porto (65%), Sporting (55%), V. Guimarães (52%) e Famalicão (72%) registam uma assistência superior a 50% da capacidade do estádio e clubes como o Belenenses sad têm uma média de assistência de apenas 11%.

Com estádios com dezenas de milhares de cadeiras, o efeito mental acaba por ser idêntico. “Infelizmente, em Portugal, há jogos das competições profissionais em que temos poucas pessoas. Lembro-me de jogos da U. Leiria em que tínhamos 150 pessoas e por isso já estávamos habituados a encontros com menos público“, diz João Capela na conversa com o Observador, acrescentando que “a perceção da falta de público acontece mais na fase inicial, porque depois a sensação acaba por ser idêntica a jogar com poucos adeptos na bancada”.

A questão do reduzido número de adeptos “é um problema identificado em Portugal” ao que diz o psicólogo Jorge Silvério, que assegura que a melhor forma de preparar um jogo sem adeptos é “manter as rotinas, mesmo com um ambiente diferente e procurar ao máximo antecipar os momentos do jogo”. Até porque, “à partida, o jogo jogado será idêntico, desde que a equipa de arbitragem esteja preparada e concentrada“, acrescenta o especialista em preparação mental, numa estratégia que foi seguida pelo antigo árbitro internacional quando em 2009 foi quarto árbitro de um jogo à porta fechada, numa equipa liderada por Duarte Gomes.

“Entrar num estádio sem público é uma situação diferente”

“Era um encontro na Croácia. O Dínamo de Zagreb tinha sido castigado com um jogo à porta fechada” e a equipa de arbitragem era 100% portuguesa, liderada por Duarte Gomes e com João Capela como quarto árbitro. “Porque sabíamos que íamos jogar sem público, quando preparámos o jogo, quer na semana anterior quer na reunião, tivemos isso em conta para que mantivéssemos as rotinas o mais parecidas com um jogo dito normal”, diz ao Observador, em que dá ainda conta de que, “no caso da UEFA existe uma preocupação em preparar todo o cenário, para que tudo decorra normalmente”. Ainda assim, para o juiz que se retirou a temporada passada, “entrar num estádio, em especial numa competição europeia sem público é uma situação diferente”.

Em Portugal, essa preparação mental aos árbitros para esta retoma do Campeonato também existiu, ainda para mais, como dá conta Jorge Silvério, “numa profissão com um vasto conjunto de fatores específicos: lidar com os erros, reagir às criticas, são tudo questões que tornam esta função particularmente exigente no capitulo mental”.

Apesar da “mudança de chip” quando o pontapé de saída é dado, um jogo à porta fechada acaba por permitir estar atento a mais detalhes. “Mesmo com público conseguimos perceber o que se passa dentro do terreno de jogo e nos bancos, provavelmente há uma outra situação que não é tão audível, mas o que importa mais do que se diz é a forma como se diz“, diz João Capela, assegurando que o critério é idêntico a um jogo com casa cheia. Ainda assim, não deixa de ser involuntário que “há momentos em que com a paragem do jogo há um certo desligar da concentração, que gera uma maior atenção face a essa diferença de não existir publico”, remata Jorge Silvério.

Preparação e mentalização à parte, certo é, que treinadores e jogadores já admitiram as dificuldades inesperadas de jogar sem o apoio do 12.º jogador – o adepto –, e que as criticas às equipas de arbitragem já vão surgindo como quando o Campeonato decorria com público nas bancadas.