O secretário-geral da Organização dos Estados de África, Caraíbas e Pacífico considera que “Portugal pode marcar pontos importantes” quando presidir ao Conselho da União Europeia, no primeiro semestre de 2021, fazendo uso da sua vasta “experiência político-diplomática”.

Em entrevista à Lusa, em Bruxelas, Georges Chikoti congratula-se por a União Europeia agora já assumir as relações com África “como uma prioridade”, e considera que Portugal é o ator ideal para dar um novo impulso a essa parceria, como de resto o tem feito no seu histórico de presidências da UE.

Certamente que muitos portugueses não sabem, mas Portugal é provavelmente um dos países europeus com maior experiência político-diplomática. Não são muitos os países que produziram um secretário-geral das Nações Unidas [António Guterres], um presidente da Comissão Europeia [Durão Barroso] e muitos diplomatas portugueses à volta do mundo” em postos-chave, observa.

Reportando-se ainda à vasta “experiência político-diplomática” de Portugal, o dirigente angolano comentou com um sorriso que “também provavelmente não é por nada” que é atualmente secretário-geral da OEACP, atribuindo a sua eleição também ao peso e prestígio crescente da lusofonia na cena mundial.

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“Antes de mim, todos os que me precederam eram ou anglófonos ou francófonos”, apesar de os Estados ACP incluírem “hispanófonos, francófonos, anglófonos e lusófonos”, observou, considerando que a sua eleição foi fruto do “engajamento do Presidente João Lourenço e do governo de Angola” e a “expressão de uma política externa de Angola que nos últimos tempos se tem revelado ativa entre os seus pares”, mas “também fruto da lusofonia”.

Relativamente à presidência portuguesa da UE no primeiro semestre de 2021, Chikoti disse que gostaria de ver Portugal “escolher um tema importante de preocupação, não só para África, mas olhando também para os países em vias de desenvolvimento e particularmente os [79] países ACP, que têm uma relação com a Europa de quase 50 anos”, e numa altura em que decorrem as negociações para uma nova parceria no “pós-Cotonu”.

Apontando que tenciona visitar Portugal “nos próximos tempos”, Chikoti referiu que já teve “um encontro virtual a senhora secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros de Portugal”, Teresa Ribeiro, no qual pôde verificar “que de facto Portugal está a preparar-se muito bem para assumir a presidência da União em janeiro”.

Eu também quero contribuir minimamente para este esforço. Eu tenho esperança que Portugal pode fazer muito mais do que as pessoas pensam. Portugal tem o mesmo conhecimento e experiência dos problemas globais das nossas regiões que países como França e Reino Unido. Pode também contribuir muito para aquilo que a Europa precisa na sua relação connosco, e eu penso que vai certamente fazer uma boa presidência, tenho muita confiança”, declarou.

“Também seria muito bom que nós pudéssemos mostrar ao mundo aquilo que nos distingue como lusófonos, penso que essa é também uma dimensão que deve ser tida em conta”, acrescentou.

Perspetivando a próxima cimeira entre União Europeia e União Africana, prevista para o próximo outono, ainda durante a presidência alemã, Georges Chikoti considera que é uma oportunidade para “uma maior aproximação política entre os dois continentes”, até porque diz sentir “uma vontade” comum nesse sentido, e antecipou que as discussões se centrem também em “questões de paz e segurança do interesse das regiões”.

Além da longa instabilidade na região do Sahel, o dirigente angolano observa que há atualmente “um conflito que afeta neste momento uma região vasta, desde o Mali, passando pelo Burquina Faso, Níger e Chade”, verificando-se também instabilidade na África Central, no Sudão, na Somália, e este é um “tema que vai continuar a preocupar”, e que deve ser discutido entre as partes.

Secretário-geral dos Estados ACP defende suspensão ou alívio de dívida

Chikoti defende uma suspensão ou perdão de dívida aos países mais pobres, muitos dos quais afetados pela pandemia da Covid-19 em simultâneo com outras crises.

“É a primeira vez que os países da OEACP estão afetados por uma dupla crise: a Covid-19 não vem só, a  Covid implicou paragem das economias, paragem da produção, e houve mesmo países que passaram por crise alimentar, em que não tiveram o que comer”, salienta Georges Chikoti.

O responsável angolano sublinhou que, com a pandemia, “a crise acentuou-se para muitos desses países”, pelo que naturalmente a organização que lidera também vê “com bons olhos que haja uma posição entre os países endividados e os países credores”, pois, pura e simplesmente, “os países pobres não estão em condições de pagar as suas dívidas ou de continuar a fazer o processo de pagamento”.

“Acho que vai ser possível e nós estamos solidários com todos os países das nossas regiões, porque estão bastante afetados”, disse, apontando que, além da pandemia, registaram-se outros fenómenos como “a crise dos ciclones, que afetou Bahamas e Vanuatu, no Pacifico” ou a praga de “gafanhotos na África de Leste”. “Portanto, é muita crise num curto período de tempo, e ao mesmo tempo ter de gerir dívidas”, sublinhou.

O secretário-geral da OEACP congratulou-se por os sinais que estão a chegar das instituições e países credores serem no sentido de uma abertura para um alívio da dívida, enfatizando que os países com economias mais frágeis não estão simplesmente “a pedir que lhes retirem a dívida, mas que haja uma compreensão entre os fornecedores de crédito”, num contexto excecionalmente grave.

Senti uma grande predisposição dos países mais ricos e das instituições detentoras de capital de poderem encontrar uma forma de atenuar ou de aliviar o processo de pagamento de divida, o que quer dizer que poderá haver eventualmente uma suspensão ou, nalguns casos, uma redução senão mesmo acabar com a dívida”, disse.

Chikoti apontou que, na sua última reunião, os países do G20 já “deram indicações de que iriam olhar para este aspeto, assim como algumas instituições importantes, como o Banco Mundial e o FMI, mostraram que era necessário haver uma certa ponderação em como iriam encarar a dívida dos países” das regiões de África, Caraíbas e Pacífico.

A assunção do problema da dívida como uma questão central para os governos africanos ficou bem espelhada na preocupação que o FMI e o Banco Mundial dedicaram a esta questão durante os Encontros Anuais, que decorrem em abril em Washington, na quais disponibilizaram fundos e acordaram uma moratória no pagamento das dívidas dos países mais vulneráveis a estas instituições.

Em 15 de abril, também o G20, o grupo das 20 nações mais industrializadas, acertou uma suspensão de 20 mil milhões de dólares, cerca de 18,2 milhões de euros, em dívida bilateral para os países mais pobres, muitos dos quais africanos, até final do ano, desafiando os credores privados a juntarem-se à iniciativa.

Os credores privados apresentaram já em junho os termos de referência para a adesão dos países a um alívio nos pagamentos da dívida, que poderiam ser suspensos, mas não perdoados, e acumulavam juros, mas vários governos mostraram-se reticentes em aderir à iniciativa por medo de descidas nos ratings, que os afastariam dos mercados internacionais, necessários para financiar a reconstrução das economias depois da pandemia.

Chikoti confia no governo angolano para lidar com conflito em Cabinda

Georges Chikoti afirma-se seguro de que o governo de Angola sabe como lidar com as tensões em Cabinda, rejeitando que estas possam prejudicar a imagem do país como promotor de paz na região. Sublinha que “não há crise nenhuma que seja insolúvel” e nota que Angola já tem muita experiência na resolução de conflitos internos.

Angola tem esta experiência de ter conflitos que por vezes opuseram a comunidade angolana no seu todo, mas eu tenho a certeza que existe uma vontade profunda do senhor Presidente João Lourenço de consolidar a paz em Angola, e Angola nos últimos anos sempre trabalhou para a consolidação da paz ao nível nacional, e acho que não vejo nada que possa prejudicar Angola para que ela consolide a sua paz e para que possa caminhar para a frente”, afirmou.

Sublinhando que “adversidades e dificuldades todos os países têm”, Chikoti reforça que, “nos últimos anos, Angola sempre mostrou capacidade de abertura, capacidade de diálogo, de aproximação para com todas as comunidades” do país. “Portanto, eu tenho confiança que o governo de Angola possa alcançar paz em todas as áreas. E temos paz a reinar em todo o território. Eu não sei qual a dimensão das querelas em Cabinda, mas tenho a certeza que o Governo de Angola investe muito para a consolidação da paz”, concluiu.

A região de Cabinda tem sido palco de confrontos entre a Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC) e as Forças Armadas Angolanas. A FLEC, através do seu “braço armado”, as FAC [Forças Armadas Cabindesas], luta pela independência no território alegando que o enclave era um protetorado português, tal como ficou estabelecido no Tratado de Simulambuco, assinado em 1885, e não parte integrante do território angolano.

Criado em 1963, a organização independentista dividiu-se e multiplicou-se em diferentes fações, efémeras, com a FLEC/FAC a manter-se como o único movimento que alega manter uma “resistência armada” contra a administração de Luanda. Mais de metade do petróleo angolano provém de Cabinda.

China está em cada país africano, mas Europa não perdeu batalha

Georges Chikoti nota ainda que a China está hoje presente “em cada um dos 54 países africanos”, mas considera que a “batalha” está longe de estar perdida para a Europa.

O responsável angolano lembra que, ao longo das últimas décadas, a China foi progressivamente crescendo e ocupando no continente africano “um espaço que durante muito tempo foi esquecido, abandonado”, mas não tem dúvidas de que, se for esse o seu desejo, a Europa “tem tudo para ter um bom lugar em África, tudo para ganhar”, até porque pelo seu “bom e melhor conhecimento de África”.

Olhando em retrospetiva, Chikoti observa que “a Europa viveu um período de dizer ‘nós colonizámos o continente, somos culpados pela colonização’ e abandonaram” África, cujos países, e respetivas economias, foram naturalmente crescendo ao longo dos últimos 50, 60 anos.

E neste crescimento das suas economias, eles também têm estado a lidar com vários parceiros. Surgiu a China, uma China que entrou em África no início dos anos 60 de maneira muito tímida, que não mostrou e não indicou muita coisa”, tendo a construção do Tazara, linha ferroviária a ligar a Tanzânia à Zâmbia cofinanciada por Pequim, sido “provavelmente uma das primeiras grandes obras que fizeram em África”, juntando-se a construção de “alguns estádios de futebol e algumas grandes casas”.

Nas décadas de 70, 80 — prosseguiu — “houve transferência de muita tecnologia da Europa para a China”, que a partir daí começou a crescer como potência económica, ironicamente graças ao forte investimento europeu (e também norte-americano).

“Se forem fazer a leitura de como é que a China emergiu, a China criou, com capital e investimento europeu, adquiriu tecnologia, adquiriu capital e começou a produzir. E criou um mercado interno. Com a tecnologia europeia, eles produziram as mesmas coisas. Você fabrica um carro na China, eles vão produzir um carro chinês com a sua tecnologia, mas vão dar-lhe um nome chinês. Foi o que aconteceu em todos os setores”, aponta.

Recordando visitas que efetuou “no início dos anos 90” a fábricas na China, o antigo chefe da diplomacia angolana diz ter constatado que em todas elas tinham “mão de obra 100% chinesa, 100%” e administração chinesa, “mas o capital investido era geralmente europeu, americano e outro”.

Depois, não podemos ficar admirados que muito rapidamente tenha crescido um capital chinês e uma grande capacidade de produção chinesa. E primeiros mercados quais são? Vieram para os nossos países, com o seu capital, com os seus produtos. Em África encontram um espaço que durante muito tempo foi esquecido, abandonado. Eu olho para as minas da Zâmbia, do Congo, de Angola, que durante os anos 60, 70 eram propriedade de empresas europeias. O que os chineses fizeram foi meter novo capital, começar a explorar, e naturalmente que os bens começaram a ir para a China”, aponta.

Nos dias de hoje, “de facto, a China está em cada um dos 54 países africanos, com investimentos pequenos ou grandes, mas está] em todos os países […] De algum modo, a Europa tinha abandonado um espaço que alguém ocupou”.

“Mas penso que essa não é uma batalha perdida. Estamos em economias abertas e livres, o que quer dizer que no mercado há vários concorrentes. Há uma maior concorrência, mas acho que Europa tem tudo para ter um bom lugar em África, tudo para ganhar”, considera, apontando designadamente a “tecnologia de ponto geralmente apreciada” e o facto de os europeus “conhecem bem o mercado, conhecem bem as mentalidades africanas”.

“Mesmo que haja também uma grande presença chinesa, [os europeus] têm sempre um bom e melhor conhecimento de África, certamente. Nós em Angola temos famílias de origem portuguesa que estão há 200, 300 anos em Angola. Portanto, tudo isso representa um bom ponto de partida. Em vez de abandonar esses mercados, há que criar maiores possibilidades de investimento. Os nossos mercados precisam de capitais. Há muitas possibilidades de iniciar negócio e há muito ausência de capital”, frisou.

Georges Chikoti sublinha que a Europa não pode esperar que a China “desapareça do mapa”, mas sim ganhar consciência de que precisa de investir e competir com o gigante asiático.

Sim, há uma maior presença chinesa, mas ainda há um potencial muito grande que pertence à Europa, que tem uma relação histórica, antiga, com o continente africano. A China está aí. Simplesmente, provavelmente nunca lhe tínhamos reconhecido o potencial que agora criou. Portanto agora está aqui, vamos ter que viver com ela, e vamos ter que cooperar com ela, trabalhar com ela, concorrer com ela”, enfatizou.

“Não há ninguém que à partida tenha perdido uma batalha, mas também é importante que a Europa tome consciência de que tem capacidade, tem capital, e pode de facto investir mais e concorrer melhor. Acho que ainda há um terreno ainda muito aberta para que a Europa possa fazer bem e melhor com os países africanos”, concluiu o dirigente angolano.