O momento foi discreto, porque a pandemia a isso obrigou, mas já ficou para a história da aviação, que está agora um passo mais perto de alcançar um objetivo há muito esperado: operar aviões 100% elétricos, de forma a tornar um dos setores mais poluentes da atividade humana num transporte relativamente sustentável. Na manhã de 28 de maio, num aeródromo no estado de Washington (EUA), um consórcio de duas empresas norte-americanas operou com sucesso o primeiro voo de teste do maior avião 100% elétrico alguma vez produzido.

O eCaravan — uma versão modificada de um Cessna Caravan 208B — descolou às 8h da manhã e, durante meia-hora, sobrevoou o espaço aéreo em torno do aeroporto internacional de Grant County, onde a empresa norte-americana AeroTEC tem o seu centro de testes. Todo o voo, incluindo os momentos da descolagem e da aterragem, foi assegurado apenas por energia elétrica, depois de o avião ter sido modificado e equipado com um motor elétrico desenhado pela empresa norte-americana MagniX.

É certo que as dimensões do avião estão ainda longe de o tornar numa alternativa viável à atual avião comercial. Um Cessna Caravan 208B normal tem capacidade para apenas nove passageiros. A versão modificada, cujo peso foi reduzido ao mínimo indispensável, só tinha um lugar instalado — o do piloto. Ainda assim, de acordo com as duas empresas responsáveis pelo eCaravan, o teste foi um sucesso absoluto: o voo de 30 minutos mostrou não só que é possível operar ligações aéreas comerciais sem recurso a combustíveis fósseis, mas também que fazê-lo é mais barato do que usar os combustíveis tradicionais.

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“O avião superou as nossas expectativas”, disse o CEO da AeroTEC, Lee Human, citado pela revista Skies. “Certamente, da nossa perspetiva a partir do chão, a ver a subida inicial, havia muitas pessoas a rir e a aplaudir. Foi verdadeiramente magnífico“, acrescentou Human, salientando que o pequeno Cessna 182 convencional, que foi atrás do eCaravan para acompanhar o voo e a partir do qual foram tiradas as fotografias, foi “mais barulhento” do que o elétrico.

Além disso, restam poucas dúvidas sobre a economia. “Este voo de 30 minutos ter-nos-ia custado 6 dólares (5,30 euros) em eletricidade, quando comparado com 300 a 400 dólares (265 a 354 euros) em combustível“, explicou o CEO da MagniX, Roei Ganzarski, citado pela mesma revista.

A MagniX, que produziu o motor elétrico do eCaravan, já tinha estado envolvida num outro momento definidor do caminho rumo à aviação elétrica quando, em dezembro do ano passado, se realizou no Canadá o primeiro teste a um avião comercial totalmente elétrico. Na altura, a aeronave em questão era um pequeno hidroavião com capacidade para seis passageiros — mas no qual também só viajou o piloto — e que fez um voo de 15 minutos antes de voltar a pousar. “Isto prova que a aviação comercial inteiramente elétrica pode mesmo funcionar”, disse então o responsável da empresa.

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Na altura, a potência do motor elétrico — que é de 750 cavalos — teve de ser reduzida para 450 cavalos, de modo a adaptar-se à pequena aeronave. No teste mais recente, com o eCaravan, toda a potência do motor foi utilizada. Ainda assim, os criadores do sistema de propulsão elétrico avisam que ainda falta muito tempo para que a tecnologia seja transformada numa realidade para o dia-a-dia do transporte aéreo. “Ambos estes aviões são protótipos voadores. Não há lugares dentro deles, as baterias estão no corpo do avião. Servem para testar o sistema de propulsão e o sistema elétrico, não para transportar pessoas”, disse Roei Ganzarski à revista Skies.

Segundo os responsáveis do projeto, só falta agora que o sistema de propulsão seja certificado. Depois disso, será possível converter de modo mais definitivo um avião Cessna Caravan 208B para que seja completamente elétrico. O sistema de propulsão elétrica poderá ser instalado nas asas do avião, onde atualmente se encontram os tanques de combustível, ou na zona inferior do avião, abaixo da cabina — até porque, garantem os construtores, os motores elétricos ocupam menos espaço do que os motores a combustível que atualmente servem aquele modelo.

Por outro lado, a aviação elétrica ainda está dependente da forma como vai evoluindo a tecnologia em torno das baterias. Atualmente, para os testes, as baterias usadas para alimentar os motores elétricos não foram, segundo os responsáveis do protótipo, as mais eficientes em termos de relação entre a capacidade de armazenamento de energia e o tamanho. “Ao longo dos próximos 12 a 24 meses, todos reconhecemos que haverá uma melhoria substancial na densidade da energia para sistemas de baterias que justifiquem a utilização em aviões“, disse o líder da AeroTEC, Lee Human.

A possibilidade de realizar voos comerciais totalmente dependentes de energia elétrica pode revolucionar definitivamente a aviação comercial, que atualmente é o meio de transporte mais poluente em atividade — o que já levou à criação do movimento “flygskam”, que incentiva à redução das viagens aéreas como forma de preservar o ambiente. De acordo com números da Agência Europeia do Ambiente, quando viaja de avião, um único passageiro é responsável pela emissão de 285 gramas de CO2 para o ambiente por cada quilómetro realizado. Trata-se de um valor quase três vezes superior ao dos carros ligeiros (104 gramas por passageiro por quilómetro) e 20 vezes maior do que o meio de transporte mais ecológico — o comboio, com um valor de 14 gramas de CO2 por passageiro por quilómetro.

Por outro lado, o transporte elétrico não é completamente limpo: é preciso contabilizar as emissões de CO2 relacionadas com a produção da energia elétrica (nem sempre oriunda de fontes renováveis) e também o impacto ambiental da produção das baterias — veja-se, por exemplo, o impacto da exploração do lítio usado para a produção de baterias elétricas.

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Segundo contas da própria MagniX, tendo em conta todo o processo de produção de energia elétrica, um voo do eCaravan é, atualmente, responsável por apenas 38% do dióxido de carbono que seria emitido num voo da versão convencional do avião — cálculos feitos tendo em conta a realidade do estado norte-americano de Washington, onde 77% da eletricidade vem de fontes renováveis e onde todos os voos do avião decorreram.

Diretamente durante o voo, o eCaravan emite zero dióxido de carbono, enquanto o mesmo voo realizado por uma versão tradicional do avião, com recurso a combustível normal, seria responsável pela emissão de 860 quilogramas de CO2 para a atmosfera. Por outro lado, indiretamente, o eCaravan é responsável pela emissão de 373 quilogramas de CO2 devido ao processo de produção de energia elétrica em Washington, enquanto o processo de extração e refinação do combustível é responsável por cerca de 100 quilogramas de dióxido de carbono.

Contas feitas, o voo do elétrico eCaravan é responsável pela emissão de 373 quilogramas de dióxido de carbono, enquanto o mesmo voo com um avião tradicional tem um saldo final de 961 quilogramas de CO2 emitidos para a atmosfera.

A procura de soluções que permitam reduzir o impacto ambiental das viagens aéreas tem motivado inúmeras empresas de aviação a investigarem tecnologias inovadoras para a criação de aviões elétricos. No ano passado, a construtora aeronáutica israelita Eviation Aircraft apresentou, no Salão Internacional de Aeronáutica de Paris, em França, o “Alice“, na altura considerado o primeiro avião comercial elétrico do mundo. À época, a Eviation apresentou apenas um protótipo, com capacidade para nove passageiros, em teoria capaz de percorrer cerca de 1.000 quilómetros apenas um carregamento, com vista a usar em rotas domésticas curtas.

O primeiro avião comercial elétrico do mundo chama-se Alice e tem uma autonomia de 1.000 quilómetros