Já nos começamos a habituar. O chão das instituições públicas e culturais tem hoje mais sinalética que as estradas portuguesas — embora mais simples e colorida — e os avisos são para respeitar. Também já começa a ser um clássico sermos confundidos com outrem, se já o acontecia antes da pandemia — barbas há muitas — imagine-se agora, onde a pilosidade mais parece uma árvore com vegetação a crescer em direções impróprias. Só queremos um café e prometemos não tocar no balcão. É servido em cartão, para acabar no lixo e sem regressar a nenhuma outra mão depois de ser ingerido.

De seguida, rumamos à Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB) onde atores e técnicos se preparam para mais um ensaio de “Mártir”, texto do dramaturgo alemão Marius von Mayenburg aqui encenado pelo diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada (CTA), Rodrigo Francisco. O cenário não é muito diferente do habitual: há quem bata texto de máscara, mas a maioria está metida nos seus rituais pré-ensaio, a tentar garantir que as palavras não lhe escapam, ajeitam-se figurinos, colocam-se adereços nos sítios estrategicamente definidos, e ainda sobra quem se estique no solo em pose de morto.

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Morrer primeiro, para viver depois. No que à pandemia diz respeito, o bom de Mártir, é que apesar de os atores estarem praticamente durante todo o espetáculo em cena, há distanciamento suficiente no cenário para que, quando estão sentados nas laterais — essa zona híbrida que tanto é cena como não é, que faz com que sempre estejam a meio caminho entre um membro do público e a personagem que carregam — não haja perigo de contágio ou necessidade de máscara. Coisa que ainda passou pela cabeça de Rodrigo Francisco: “Eu ao início, ainda tive uma ideia, bastante disparatada, de quando eles tivessem fora de cena estarem com as máscaras postas, mas felizmente caí em mim e achei que era estúpido, e este cenário até tem espaço. Não valia a pena, acho que as pessoas vêm ao espetáculo também para esquecer que estamos a viver esta situação, não vale a pena estarmos a tentar ser muito contemporâneos”, explica.

Voltando agora atenções para a cena propriamente dita — seja ela onde for. Benjamim faltou à última aula de natação por motivos religiosos. A mãe não acredita, mas o facto de algumas colegas usarem biquíni não se coaduna com o cristianismo extremado deste jovem que habita dentro de A Bíblia, ao ponto de muito do seu discurso serem frases roubadas ao livro sagrado — sempre que emite tais palavras, alguém pinta o evangelho correspondente, numa espécie de paredes falsas de papel, que ficam inscritas com Mateus, Lucas, João, Isaías. Na aula seguinte de natação, Benjamin salta para a piscina completamente vestido. Como um bom clássico escolar, é chamado, junto com o professor de natação e a diretora de turma e docente de Biologia, ao gabinete do diretor da escola. A partir daí, acentua-se cada vez mais a radicalização deste jovem, benzida pela frase amargurada: “Já nenhum cristão é mártir”.

© Filipe Amorim/OBSERVADOR

Pelo caminho, manipula um amigo que tem uma perna mais curta que a outra e que por isso é alvo de chacota constante no recreio, passando muitos intervalos a ser enfiado no caixote de lixo pelos colegas. É precisamente perante a pessoa mais fragilizada que Benjamin vai exercer o seu poder, convencendo-o a travar um plano para atingir letalmente a sua arqui-inimiga e diretora de turma. Aqui, estamos em Portugal, mas o texto original não nos deixa de guiar para a Alemanha atual, onde o fantasma do anti-semitismo e do nazismo ainda vive abastadamente, ao qual se junta ainda temas como o misoginia e o homofobismo.

Escrito por Marius von Mayenburg (que é dramaturgo residente e partilha a direção artística da mítica companhia berlinense Schaubühne com Thomas Ostermeier) em 2012, este texto, estreado em Novembro de 2018 pela CTA, parece que nunca esteve tão vivo, sobretudo se analisarmos os recentes movimentos e manifestações antiracistas que à boleia do assassinato de George Floyd se propagaram por todo o mundo. “Os bons textos têm essas coisas, são sempre contemporâneos. Ontem comentei com os atores que só ontem é que tinha percebido o texto finalmente, ou pelo menos uma parte dele. É um texto sobre a forma como o nazismo subjaz ainda na sociedade alemã. É um tema que lá está, é o tal esqueleto no armário que a professora na última cena diz, não é uma expressão inocente. É disso que o Mayenburg está a falar. É um texto com um grande sentido de humor, como nos permite rir com coisas que são muito sérias”, afirma o encenador.

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Também Ana Cris e Vicente Wallenstein, respectivamente professora Érica e Benjamim, reconhecem a urgência das temáticas suscitadas pelas palavras de Mayenburg. “É uma questão urgente de ser falada, de ser refletida cívica e coletivamente. E o espetáculo proporciona-nos isso. Se calhar até mais agora do que na altura, até porque o antisemitismo não é uma realidade muito portuguesa, ou pelo menos não tem o peso que terá na Alemanha ainda hoje. Mas acho que agora talvez as pessoas consigam aproximar-se mais ou de uma outra forma ao texto, fazer a ponte”, enquadra Ana Cris, vencedora do Prémio de Melhor Actriz dos Prémios SPA 2019 com este espetáculo. “De facto, agora estas questões tornaram-se mais globais devido aos movimentos que têm existido e aos partidos políticos que se têm manifestado mais nesse sentido no nosso país, portanto, sem dúvida, para mim ganha toda uma força nova”, acrescenta Vicente Wallenstein nomeado ao Prémio de Melhor Actor dos Prémios SPA 2019 por este Benjamim.

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Conversa que tomou lugar logo após um ensaio corrido, quase uma falta de respeito jornalística, pelo menos a avaliar pelo estado de exaustão com que ambos se apresentavam. Também nós escolhemos um momento de fragilidade para lhes pedir um pequeno momento a três, com as devidas distâncias — e a sorte de as tecnologias que permitem gravar ficheiros de áudio já sejam bastante evoluídas. Eles que, tal como tantos outros artistas, ficaram trancados em casa sem conseguir trabalhar, com cancelamentos ou adiamentos e, portanto, este regresso ao seu lavor, ao seu habitat, é particularmente importante, como nos conta Vicente Wallenstein: “Regressar, não falando da logística da desinfeção, é logo à partida estranho porque parámos todos não sei quanto tempo e, de repente, não sabemos bem como é que se volta, os cuidados que temos na nossa vida pessoal só a nós nos dizem respeito e quando vimos para o teatro há um grupo de pessoas às quais as nossas ações também dizem respeito. Nesse sentido, aquilo que mais importa e que foi falado entre todos é a confiança entre o grupo e tentar garantir que, dentro daquilo que é possível, as pessoas controlam os seus comportamentos para além daquilo que é este círculo.

A pandemia em vigor no mundo não alterou praticamente nada no espetáculo. À exceção dos beijos, que foram retirados e substituídos por momentos que possam recuperar essa energia, e de um momento, numa aula da professora de biologia, em que os atores convidavam elementos do público a sentar-se na carteira, a regressar ao tempo de estudante. Logicamente, já não vai acontecer. E também não vai acontecer a Covid-19 reformular a forma como se faz teatro, este sítio só pode ser livre. Como é que se contracena a dois metros? Não se contracena. “O contacto e a proximidade são inevitáveis, neste espetáculo em particular e em muitos outros. De certa forma, a partir do momento em que começamos, embarcamos nisto juntos, tentando ter o máximo de cuidados possíveis, sendo que há coisas que não conseguimos contornar, como os abraços, os perdigotos tão constantes no teatro, estamos mais longe do público, mas dos nosso colegas não é propriamente possível”, admite Vicente.

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Ana Cris concorda e alerta para a especificidade e para um espetáculo que vive de confrontos a meio palmo, de testas encostadas, de apalpões, de gritos, de uma violência relacional que não mais seria que falsa se as preocupações fossem aquelas que temos nas outras zonas das nossas vidas. “Para fazer este espetáculo não podemos retirar aquilo que é fulcral para que ele exista. É claro que todos nos inibimos de fazer outras coisas fora daqui para nos protegermos, mas aqui dentro estamos numa espécie de bolha, o contacto é inevitável. Ali, em cena, eu sinto-me protegida”.

De alguma maneira, um lugar que outrora podia ser um sítio de tensão, antecedido por nervos, torna-se agora liberdade. Naquela hora e meia, não há mais nada, nem gel desinfetante a interromper textos.

No que se segue, Ana Cris está com “Mártir” e “Jardim de Verão” (encenação de Nuno Carinhas, texto de Elfriede Jelinek) no Festival de Almada; em outubro, estreia no Teatro Nacional Dona Maria II (TNDMII) “Pin My Places”, um texto da Mariana Ferreira com encenação do Rui Horta; em novembro, no Teatro Thalia, integrado no Temps d’Images, estará na reposição de as árvores deixam morrer os ramos mais bonitos, um espetáculo que a companhia Outro estreou em setembro nos Açores; em 2021, estará em “O Dicionário da Fé”, encenado pelo Jean Paul Bucchieri, com texto de Gonçalo M. Tavares, também no TNDMII.

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Quanto a Vicente Wallenstein, está a investir na sua companhia As Crianças Loucas, com quem deve estrear, em breve, provavelmente ainda este ano, o tão aguardado “Lisboawood” — que deveria ter estreado em Junho deste ano, no Teatro Ibérico. Além disso, fará a sua primeira encenação com um espetáculo para o público infanto-juvenil sobre ecologia, com texto de João Cachola, talvez para 2021. Além disso, estão ainda a envolver-se num projeto social e comunitário com O Homem, estrutura criada por Filipe Faria em Idanha-a-Nova, para trabalhar com comunidades de Idanha e do Casal Ventoso e fazer um espetáculo final, um projeto grande, para ano e meio, que comprova que As Crianças Loucas estão num bom caminho.

O Festival de Almada começa esta sexta-feira e prolonga-se até dia 26 com inúmeros motivos para ir ao teatro. Voltemos a encontrar-nos.