Da chamada geração de 50, Juan Marsé foi sem dúvida o mais importante dos escritores. O verdadeiro operário numa geração encantada com os sofrimentos de operários e camponeses, o verdadeiro sofredor num meio sempre muito compungido com o sofrimento alheio, Juan Marsé, talvez por encarnar o objeto principal da literatura espanhola pós-guerra civil, foi provavelmente o escritor que mais lhe fugiu.

É certo que Marsé nunca escondeu a militância anti-franquista, que entra pelos tópicos recorrentes da literatura catalã mais comprometida, do peso das educações católicas à exploração dos trabalhadores; no entanto, Marsé, o órfão, o operário, o Homem que teve a vida que os escritores da sua geração efabularam, é de todos aquele que vai mais para lá da caracterização esquemática de patrões e operários.

A Guerra de Espanha teve um efeito mais interessante nos escritores que não a viveram do que naqueles que a fizeram. Se em Foxá nunca deixaremos de ver o lado glorioso da gesta falangista, em Hemingway e nos derrotados vemos a violência e a falta de sentido como temas principais.

É igualmente fácil sermos belicistas quando ganhamos como ser belicistas quando perdemos; Marsé, no entanto, da Guerra só herdou os escombros. E se o regime franquista ocupa um lugar importante no seu pensamento, a verdade é que os efeitos da guerra nos mais simples acaba por ser muito mais central na sua literatura.

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A Marsé interessa mais a divisão, a ideia de que a Guerra obriga a uma escolha que muitas vezes não queremos fazer, do que propriamente a sua justiça ou injustiça. Como é que, à semelhança do que acontece no romance Se te dizem que caí (título tirado de um verso do hino da Falange), dois amigos de infância acabam mortos em barricadas opostas?

Os romances de Marsé são sobre o peso das circunstâncias, mas de uma maneira que vai para lá da impotência dos fracos diante da prepotência dos poderosos. O que é interessante em Marsé é que ele, com os seus romances, mostra a impossibilidade de uma espécie de agnosticismo em relação à sociedade. Num certo tempo, foi impossível não estar de um lado ou de outro, e foi impossível que isso não minasse todas as relações pessoais. A amargura de alguém que não quer por a amizade atrás da política mas que é forçado a isso pela presença avassaladora da guerra é um drama profundo, que Marsé soube explorar muito bem.

Claro que as cabeças mais geográficas e os ouvidos mais refinados lembrarão sempre de Marsé aquela Barcelona escura e pesada, em que uma Catalunha de rostos duros vai criando uma resistência muda ao poder. A cidade pobre e violenta, o interior desconhecido de uma cidade críptica, os bairros pobres mas cheios de História, tudo isso é suficiente para fazer de Marsé um escritor memorável.

Se mais não tivesse, Marsé já poderia ser um admirável escritor catalão e ocupar um lugar respeitável entre tantos escritores que, no pós-geração de 98 se dedicaram às especificidades das suas regiões.

Marsé, porém, vai mais longe. Sem rejeitar a herança de Unamuno ou de Antonio Machado, que dão aos seus livros uma vincada personalidade espanhola, Marsé acrescenta-lhe uma certa universalidade. Aos temas tipicamente marxistas e às personalidades espanholas, Marsé acrescenta um sofrimento que é acima de tudo humano. O sofrimento das zonas cinzentas e em que a guerra já não tem apenas o drama do Homem contra o Homem, mas também a tragédia do Homem contra um destino que não escolheu e que o enche de sangue, do sangue dos seus irmãos e dos seus próximos.

Sempre houve uma leitura anti-franquista nos romances de Marsé, um associar desta sensação de que as personagens estão encurraladas a uma qualquer asfixia franquista ou ditatorial; no entanto, Marsé está para lá disso. A asfixia não é humana, não depende de um Homem ou de um regime. O mundo é muito mais forte do que o Homem, e leva-nos a situações em que não queremos estar. Marsé percebeu-o, e foi isso que fez dele um escritor dos mais importantes da Espanha Contemporânea.