“O notável Cristiano converteu um penálti para marcar o 50.º golo pela Juventus. Um jogador incrível”. O comentário, simples e cheio de intenção, foi feito por Gary Lineker, antigo avançado inglês que ficou na história pelos golos, pela elegância e por ter dito que o futebol é um jogo em que jogam 11 contra 11 e no fim ganha a Alemanha. No Twitter, em duas linhas, Lineker resumiu tudo aquilo que já foi escrito sobre Cristiano Ronaldo: é “um jogador incrível”.

O comentário do antigo internacional inglês surgiu na passada segunda-feira, quando a Juventus venceu a Lazio com dois golos de Ronaldo e deu um passo mais do que importante rumo à conquista do nono Scudetto consecutivo. Este domingo, com a vitória frente à Sampdoria e com mais um golo de Cristiano Ronaldo, a equipa de Maurizio Sarri carimbou o primeiro lugar da Serie A, juntou mais um ano à hegemonia que implementou em Itália há quase uma década e começou da melhor maneira a preparação para a reta final da Liga dos Campeões, onde ainda terá de jogar a segunda mão dos oitavos de final com o Lyon para chegar à final eight de Lisboa. Mais do que isso, este domingo acabou por ser para Cristiano Ronaldo o primeiro culminar de uma das temporadas mais difíceis dos últimos anos — entre os desentendimentos com Sarri, os problemas físicos do início da época, o ultrapassar da barreira dos 35 anos e três meses de paragem sem qualquer tipo de precedentes.

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Tudo começou em novembro, quando Sarri substituiu Ronaldo em dois jogos seguidos e o jogador português, na segunda partida, decidiu sair diretamente do relvado sem se sentar no banco de suplentes nem esperar pelo apito final. As notícias de um corte de relações entre treinador e avançado multiplicaram-se, vozes como Fabio Capello e Alberto Zaccheroni levantaram-se para elogiar a decisão do primeiro e criticar a atitude do segundo e o português decidiu não abrir a porta a especulações. A polémica acabou por surgir na melhor altura possível: imediatamente antes de uma paragem para compromissos internacionais. Ronaldo juntou-se à Seleção Nacional, marcou quatro golos, garantiu o apuramento para o Euro 2020 e só falou depois de tudo isso.

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O festejo de Cristiano Ronaldo depois de um dos golos contra a Lazio, com Maurizio Sarri, acabou por ser a imagem de uma relação que sofreu melhorias nos últimos meses

“Tenho jogado limitado nas últimas três semanas. Não houve polémica nenhuma, vocês [jornalistas] é que a criaram. Tentei ajudar a Juventus. Ninguém gosta de ser substituído mas entendo, porque eu não estava bem. Nestes dois jogos também não estava a 100%. Sacrifiquei-me em prol da equipa. Aqui na Seleção podíamos ficar de fora e sacrifiquei-me também pela Seleção. Graças a Deus, na minha carreira nunca me lesionei muito, mas pode acontecer. É uma dor que me impede estar a 100%, mas tento jogar sempre. Às vezes não dou mais porque não consigo, mas meteram muita polémica onde ela não teria que existir. O clube sabia que eu estava limitado. Mas o mais importante é que ganhámos, que a Juventus está em primeiro e eu vou estar bem o mais rápido possível”, disse o capitão da Seleção Nacional, esvaziando o episódio mediático que fez capa dos jornais desportivos italianos durante dias.

O assunto terá sido resolvido internamente, sem sanções disciplinares, mas Cristiano Ronaldo terá reunido com Fabio Paratici e Pavel Nedved, responsável pela área do futebol da Juventus e vice-presidente, para depois pedir desculpa ao grupo no balneário. Paratici e Nevdev, duas figuras-chave na ida de Ronaldo para Itália há dois anos, a par do presidente Andrea Agnelli, acabaram por ser instrumentais na forma como interpretaram a situação e a tornaram um gancho positivo para o futuro. O episódio, assim como o final de 2019 e o início de 2020, acabou por marcar um ponto de clivagem entre um antes e um depois na temporada do português — de repente, e tal como tinha garantido, tinha ficado “bem o mais rápido possível”. E até teve tempo e inspiração para marcar aquele golo de cabeça à Sampdoria, em dezembro, onde estava a dois metros e cinquenta e seis centímetros do chão na altura em que cabeceou.

Ronaldo mudou de década com penteado novo e iPod à antiga mas continua o mesmo: hat-trick, assistência e vitória da Juventus

No primeiro jogo do novo ano, contra o Cagliari, apareceu de penteado novo, assinou um hat-trick, marcou pela quinta jornada consecutiva e valeu mais uma vitória à Juventus. 2019 nem tinha acabado muito bem para os bianconeri, com a derrota na Supertaça italiana para a Lazio, mas Cristiano Ronaldo fez questão de explicar logo na primeira partida que a história de 2020 teria de ser forçosamente diferente — ainda que o mundo, uma pandemia e uma quarentena tenham tornado esta a mais atípica de todas as temporadas do futebol internacional.

O jogador português foi para a Madeira, onde ficou praticamente durante todo o isolamento, treinou no relvado da Choupana e regressou a Itália para disputar a reta final da Serie A. A retoma até começou mal, com a derrota na final da Taça de Itália com o Nápoles, mas Ronaldo mostrou desde logo que estava com o pé quente: marcou em seis jogos seguidos para a Liga, só ficou em branco no empate com o Sassuolo e na derrota com a Udinese, chegou aos 30 golos em 30 jogos e até converteu um livre direto depois de 42 tentativas falhadas. Mais do que isso, aproximou-se de Immobile na lista dos melhores marcadores da Serie A e tornou-se o primeiro jogador da história a marcar 50 golos em Inglaterra, Espanha e Itália, sendo também o mais rápido de sempre a chegar a essa marca na liga italiana. Mais ainda: nos últimos 60 anos, apenas Luca Toni e Gonzalo Higuaín tinham conseguido marcar 30 ou mais golos na Serie A.

Cristiano Ronaldo (R) of Juventus FC celebrates with Paulo

A parceria do português com Dybala tem sido uma das grandes mais-valias da Juventus esta temporada

Tudo isto numa época em que Ronaldo chegou por três vezes ao jogo 1.000 da carreira: o primeiro foi em novembro, por contar com internacionalizações nas camadas jovens; o segundo foi em fevereiro, a contar apenas com a Seleção A mas com dois jogos pelo Sporting B; e o terceiro, com as contas mais certinhas, já no início de março, na última partida disputada em Itália antes de tudo parar devido à pandemia. Em fevereiro, ao quinto dia do mês, o jogador chegou aos 35 anos e muito se falou sobre a forma física em que estava, sobre os objetivos que ainda teria de completar e sobre tudo o que tinha alcançado ao longo de mais de 15 épocas ao mais alto nível. Depois de três meses de paragem, algo por que nenhuma outra geração de jogadores teve de passar, Ronaldo voltou mais rápido, mais forte e mais eficaz, superando qualquer ideia eventual de uma interrupção decisiva para o início do fim da carreira do avançado.

E a verdade é que os últimos jogos também têm servido para a Juventus arrumar o tal dossiê que abriu a primeira polémica da temporada. Se durante toda a época foi notório que Cristiano Ronaldo e Maurizio Sarri não se davam bem — com o jogador português a chegar a revirar os olhos depois de receber instruções do treinador –, a relação entre um e outro parece ter melhorado substancialmente nas últimas semanas. Contra a Lazio, Ronaldo aproximou-se do banco depois de marcar um dos golos e cumprimentou Sarri, numa imagem praticamente inédita desde que o técnico chegou a Turim. Esta quarta-feira, na véspera da visita a Udinese que acabou por terminar em frustração, foi o treinador a desfazer-se em elogios ao capitão da Seleção Nacional.

CR7 chega aos 35 anos a jogar como Pelé, Cruyff ou Maradona. Ao contrário deles, ainda tem sete objetivos (e um envolve Pelé)

“Falei com o Cristiano e disse-me que se sente muito bem. Tem uma grandíssima capacidade de recuperação, faz parte do seu ADN, como a capacidade de projetar-se até ao próximo objetivo a nível coletivo e individual. As suas capacidades de recuperação física e mental não são comuns”, disse Sarri, que acrescentou ainda que o português é “um campeão a nível mental e técnico”, assim como um “campeão da cabeça aos pés”, que tem uma capacidade “descomunal” para gerir as energias. Se ainda não é totalmente líquido que o italiano vai estar no comando técnico da Juventus na próxima temporada, uma coisa é certa: o ponto de partida da relação entre o treinador e a principal estrela da equipa está nesta altura no melhor momento possível.

Com o título conquistado este domingo, Cristiano Ronaldo pode agora entrar em “modo Champions” para ir atrás do principal motivo que o levou a mudar-se de Madrid para Turim, ainda em 2018 — vencer a Liga dos Campeões em três países diferentes, em três clubes diferentes e levar a Juventus até ao troféu europeu que escapa há mais de 20 anos. Pelo meio, e sem corrida pela Bola de Ouro esta época depois de a France Football anunciar que não vai entregar o prémio em 2020, Cristiano Ronaldo tem ainda um objetivo para cumprir: ultrapassar Lewandowski e Immobile nas últimas duas jornadas da Serie A e arrecadar a quinta Bota de Ouro da carreira, ficando a uma de Lionel Messi.