O antigo secretário-executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Murade Murargy, considera que os ataques em Cabo Delgado, no norte de Moçambique, têm, por trás da questão religiosa, interesses económicos, para os quais o início da exploração do gás “constitui um perigo”.

Como é que esta situação [dos ataques em Cabo Delgado] surge num momento em que são descobertas grandes reservas energéticas naquela região? Essa é a questão que se coloca. Quais são os interesses que estarão em jogo?”, questionou o embaixador, que foi também chefe da Casa Civil do Presidente moçambicano Joaquim Chissano e secretário-executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Murargy salientou, numa entrevista à Lusa, que só há duas entradas por onde pode ser feita penetração de forças na região de Cabo Delgado: o mar e através da fronteira com a Tanzânia.

Isto começou por ter uma componente religiosa e depois transformou-se numa componente económica. Os primeiros ensaios da invasão foram feitos através das chamadas madraças [escolas islâmicas], que queriam correr com a administração da Frelimo, queriam introduzir o islamismo, o Corão. Começou por um movimento dessa natureza”, afirmou o diplomata.

“À medida que o processo foi avançando vimos que as forças que eles utilizavam estavam para além de um simples movimento religioso. Já usavam tanques de guerra e meios militares um pouco mais sofisticados, o que já punha em causa a natureza religiosa dessa invasão”, acrescentou.

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Quem está por trás desses interesses económicos, o diplomata não especificou, mas disse que “pode haver fora da região em jogo”, referindo que Moçambique pode “constituir um perigo ao nível da oferta [de reservas naturais] no mercado internacional e criar um desequilíbrio nos preços”.

Em Cabo Delgado avança o maior investimento privado de África para exploração de gás natural, liderado pela francesa Total. Porém, considerou que até agora não foi possível perceber o que se pretende com aquela agressão: se “é estabelecer um califado naquela região, que é uma das hipóteses que se fala, ou se é de facto criar uma espécie de um bloqueio para o início da exploração dos recursos naturais que estão naquela zona, ou seja, retardar o processo de exploração”.

“Temos que analisar isso. Nós estamos a tentar ver quem são as forças que estão por trás e apoiam este movimento jihadista“, rematou. Mas, para o diplomata moçambicano, “há uma verdade” que Moçambique não pode negar: o conflito em Cabo Delgado “tem uma natureza religiosa e também pode ter uma componente económica”.

Até porque “para haver desembarque destas forças através do mar” tem de existir quem dê os meios marítimos para as transportar até chegarem à costa de Moçambique. “Não acredito que um simples terrorista tenha essa grande capacidade militar para o fazer. Uma força por detrás deles está a apoiar a invasão em Moçambique”, reforçou Murargy.

Segundo o antigo governante moçambicano, o que está a acontecer no território moçambicano é uma situação que está também a ganhar terreno na Tanzânia. “É um movimento que vem lá de cima, mas vem descendo da Somália. Isto é porque há cidadãos de outros países que estão envolvidos nisto e que querem transformar esta região toda numa região islâmica“.

O governo de Moçambique “está preocupadíssimo”, afirmou.

As Forças Armadas de Moçambique, as forças de segurança, estão a trabalhar a tentar estabilizar a situação. Não estão paradas, e estão até ganhando terreno e estão conseguindo até estancar um pouco a invasão. Mas uma força de guerrilha, como são eles, não é assim tão fácil de eliminar. Não é uma guerra clássica”, sublinhou.

Por isso, para o antigo secretário-executivo da CPLP, a “solução” para o conflito em Cabo Delgado só será alcançada a “médio e longo prazo”.

CPLP devia ajudar a mobilizar apoios internacionais

O antigo secretário-executivo a CPLP deve ajudar Moçambique no combate aos ataques em Cabo Delgado, nomeadamente agindo “como um padrinho” na mobilização de apoios internacionais.

O meu país, além desta grande crise sanitária [a pandemia de Covid-19] ainda está enfrentando duas frentes de batalha (…). A primeira, já é antiga,(…) que é a guerra contra a Junta Militar da Renamo [o grupo de antigos militares do braço armado do maior partido da oposição], que está ainda atuando no centro de Moçambique. Depois tem a frente de Cabo Delgado, que está mais relacionada com o crime organizado e transfronteiriço”, sublinhou.

Numa organização como a CPLP, “solidária, fraterna, com espírito de entreajuda”, seria natural que “os chefes de Estado, de alguma forma, tivessem uma reunião de urgência,(…) para ver o que se pode fazer para ajudar Moçambique a ultrapassar esta invasão do seu território”, afirmou Murargy, que foi secretário-executivo entre 2012 e 2016.

Os apoios podem, na opinião de Murargy, ser técnico-militares, materiais ou financeiros. E, acrescentou, “a CPLP pode ser o padrinho para solicitar a mobilização do apoio internacional para Moçambique”.

Segundo o antigo responsável, o próprio presidente da organização – atualmente o chefe de Estado cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca -, “podia deslocar-se a Moçambique, falar com o Governo moçambicano, avaliar a situação (…), conhecer a origem deste conflito, depois informar os outros Estados-membros ou convocar uma cimeira de urgência”, para “encontrar soluções”.

A nível bilateral, entre os Estados-membros, também “devem haver acordos de cooperação militar, que podem permitir uma mobilização de apoios para fazer frente a esta agressão”, adiantou. Mas, a CPLP deve ver o que pode fazer “seja ao nível dos seus Estados-membros, seja de apoios fora da comunidade, ao nível das Nações Unidas, por exemplo”, apontou.

Quando questionado se o governo moçambicano quer realmente ajuda para fazer face ao problema dos ataques a Cabo Delgado, cuja origem ainda não é definitivamente conhecida, o embaixador respondeu: “Não sei. Mas a iniciativa tem de partir da CPLP. Não é Moçambique que vai pedir à CPLP para se reunir”.

Murargy apontou como exemplo o apoio que a França está a dar, com o seus militares numa força conjunta, para combater o Boko Haram, grupo jihadista que opera na região do Sahel.

“Por isso, se as Nações Unidas assumirem que este conflito em Moçambique é transfronteiriço e que põe em causa a estabilidade vindo de fora, se for chamada como uma força de manutenção de paz vai ter de considerar”, concluiu, admitindo que o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, “estaria aberto a discutir essa possibilidade e de que forma esse apoio poderia vir”.

Segundo o diplomata moçambicano, o que está a acontecer em Moçambique é uma situação que está também a ganhar terreno na Tanzânia

É um movimento que vem lá de cima, mas vem descendo da Somália. É porque há cidadãos de outros países que estão envolvidos nisto e que querem transformar esta região toda numa região islâmica”, reforçou.

Os ataques de grupos armados que desde 2017 aterrorizam Cabo Delgado já fizeram pelo menos mil mortos, entre civis, militares moçambicanos e vários rebeldes, e estão a causar uma crise humanitária que afeta mais de 700.000 pessoas.

As Nações Unidas estimam que haja 250.000 pessoas em fuga dos distritos mais afetados, mais de 10% da população da província, que tem cerca de 2,3 milhões de habitantes.

Alguns dos ataques são desde há um ano reivindicados pelo grupo jihadista Estado Islâmico e a ameaça terrorista é reconhecida dentro e fora do país, tendo os grupos de rebeldes ocupado importantes vilas de Cabo Delgado (situadas a mais de 100 quilómetros da capital costeira, Pemba) durante dias seguidos, antes de saírem sob fogo das Forças de Defesa e Segurança moçambicanas.

Além de Moçambique, integram a CPLP mais oito Estados: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Portugal, São Tomé e Princípe e Timor-Leste.