Como dar cenário a uma história de poder? Com uma escadaria dentro de um convento descarnado, por exemplo. Mais ainda se a respetiva localização for milimetricamente centrada, rodeada por pilares imponentes, sob um janelão cujos vidros ainda não viraram estilhaços. No fundo, um altar que em vez de receber missas, acolhe exércitos e casas reais. Isto tudo para dizer que a cena aqui proposta jamais será confundida com um beco lisboeta ocupado por transeuntes de cerveja numa mão e sardinha na outra. Há um domínio austero próprio da realeza, para o qual muito contribui o cenário imutável do Museu Arqueológico do Carmo, que há já vários anos é ocupado, por esta altura de calor, pelo Teatro do Bairro. Mais ainda quando o calor é pandémico.

Em 2020, torna a ser tempo de António Pires aqui trazer um texto de William Shakespeare — que tão bem assenta nesta geologia desgraçada —, como já havia acontecido em 2018, com Macbeths, quando Luísa Costa Gomes (escritora, dramaturga e tradutora que há muito integra a estrutura do Teatro do Bairro) se socorreu de várias personagens de Sir William para recriar uma Lady Macbeth à medida de Margarida Vila-Nova. Agora, a partir desta quarta-feira até dia 15 de agosto (de segunda a sábado, sempre às 21h30), volta a ser Luísa Costa Gomes a atirar-se ao dramaturgo inglês, a um texto que se presume que tenha sido escrita no final do século XVI, mas que só em 1623 viria a ser publicado no First Folio. A dramaturga realizou uma primeira tradução “mais literária”, diz-nos o encenador, em verso e convertida a partir de um inglês arcaico e de difícil acesso. Depois cortou umas quantas personagens, mais umas cenas, e construiu uma versão cénica que é a base deste Rei João.

Quem primeiro pisa a escadaria do poder é precisamente o rei (Duarte Guimarães), que vem acompanhado pela sua mãe, a rainha Leonor de Aquitânia (Alexandra Sargento). Recebem Chatillon, um embaixador francês que, a mando de Filipe II, rei de França, se apronta a exigir que João — que assumiu o poder depois da morte do seu irmão Ricardo Coração de Leão — pouse a coroa em favor de Artur da Bretanha, filho de Godofredo, que, por sua vez, também está morto e também é irmão de João — sabemos bem como eram os arranjinhos entre as cortes europeias por estes tempos. Ligações familiares à parte, João diz prontamente que não há nada para ninguém, ou seja, não cede coisa nenhuma e, assim sendo, que venha de lá a guerra. Pelo meio, conhece Filipe Falconbridge, um homem que é filho bastardo ­de Ricardo Mãos de Tesoura e que abdica das suas terras para se poder juntar o exército de Inglaterra. Daqui para a frente ficará conhecido como o Bastardo (Francisco Tavares).

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Chatillon retira-se e a escadaria depressa vira a entrada da cidade de Angers. É aí que Filipe II e João alinham os exércitos numa tentativa de resolver o imbróglio. E é também aí que se começa a desenrolar uma série de peripécias que fazem destas figuras nada mais que um bando de oportunidades. Primeiro promove-se um casamento para alimentar uma paz podre; depois aparece um cardeal em representação do Papa que troca as voltas todas aos acontecimentos; depois João manda matar Artur; depois João arrepende-se de ter mandado matar Artur. No fundo, num curto espaço de tempo, ao sabor do que mais lhes convém, tudo é hipótese e contratempo.

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“Acho este texto uma belíssima surpresa, quanto mais os anos passam mais o acho atual. Conheci-o há uns cinco anos, aquando do concurso quadrienal da DGArtes, pela mão da Luísa [Costa Gomes]. Gostei sobretudo do personagem do Bastardo, acho um personagem, de certa maneira, atípico do Shakespeare, é talvez o único que não tem correspondente histórico, é inventado e parece que é a voz ou a consciência do público. E depois tem aquele monólogo do proveito próprio, que foi o que me fez fazer esta peça”, explica António Pires.

Ora esta é uma zona do espectáculo em que o Bastardo — que parece ser dos poucos que transporta uma dimensão de luta heroica a favor de Inglaterra, das poucas personagens que parece querer ter mais ação e menos negócio (mas podem ser só aparências) — admite que o proveito próprio é a engrenagem do mundo.

“Há dez ou quinze anos esta peça talvez não fosse tão atual, ou seja, talvez não fosse tão reconhecível, mas este rei que diz uma coisa agora e daí a cinco minutos diz o seu exato contrário, com a maior das caras de pau, é muito identificável em certos políticos. E isso aqui aparece muito, a lisonja, essa cortesia. Foi por isso que quisemos fazer”, admite António Pires.

Se antes era o prestígio, o poder na sua ideia mais lata — até porque os tesouros já lá estavam e os impostos não eram baixos — hoje é o cifrão: “Aqui ninguém presta. Há um personagem que é o Huberto, que parece ter coração e uma espinha dorsal ou convicções, os outros nem convicções têm, mudam com o vento, é o proveito próprio. Hoje em dia é o guito que anda para aí, toda a gente anda atrás do dinheiro, onde pinga o dinheiro vão, não interessa o quê, as pessoas vendem-se todas. Pode-se ser tudo e estes tipos são completamente assim, para onde cai a balança é para onde eles vão”, desabafa o encenador.

Rei João é um espectáculo inserido no plano de 2020 do Teatro do Bairro, que incide particularmente sobre a disciplina da arquitetura — para cada um dos quatro anos de atividade previstos no concurso da DGArtes, propuseram uma área artística diferente. O autor deste cenário é Alberto Oliveira e em março estavam a uma semana da estreia de uma trilogia do poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca — onde estavam a trabalhar com Manuel Aires Mateus, João Nuno e Iñaki Zoilo e ainda João Mendes Ribeiro, com quem a relação profissional já é longínqua.

O projeto teve de ser adiado devido ao confinamento que a situação pandémica exigiu. Lá regressarão, em janeiro de 2021. E, apesar de tudo, António Pires reconhece que há quem esteja em muito pior situação: “Tivemos sorte, porque não mudámos grande coisa. A trilogia foi adiada, de facto, mas estamos aqui, continuamos com aquilo que tínhamos planeado. Acho mesmo muito importante que quem conseguir, obviamente que nem todos conseguem, mas quem conseguir fazer, então que faça, que se ponha em cena e que avance. Nesta altura em que há uma enorme incerteza, estamos metidos nesta maluqueira e uma coisa sabemos: o mundo está a mudar, não vai ficar igual. Não percebemos como, mas estamos cá metidos. Mesmo a ensaiar há sempre uma espécie de medo, até porque há esse receio, meio traumático, de que as coisas possam não acontecer e que acabemos todos em casa. Há um olhar novo. E acho que quando estamos a passar por isto, é neste momento que os artistas se devem apresentar, quanto mais não seja para sermos espelhos da humanidade”.

Esta é uma excursão já tradicional do Teatro do Bairro. É sempre aqui que os encontramos quando outros se queixam que a água, a sul, já esteve mais quente. Enquanto a companhia aqui faz o espectáculo, a sua casa vai estar ocupada com o FIMFA — Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas durante o mês de agosto. “Acho que é um espaço maravilhoso para este espectáculo e que é muito apelativo para as pessoas verem teatro, é ao ar livre e sabemos que existe mais medo dos espaços fechados, basta pensar nos restaurantes, fica tudo na esplanada. Portanto, aqui é a esplanada do Teatro do Bairro. É uma parceria muito importante para nós, é Lisboa, é verão, é o centro da cidade, sentir que o teatro vem à rua, vem à procura das pessoas e à procura de um sítio agradável para ser feito e que possibilita um acontecimento artístico em agosto e que tem um lado de entretenimento também. Temos tido muitas famílias, pessoas que ficaram em Lisboa e ainda não foram para o Algarve, ou os outros que já vieram”, conta. E até para os turistas resistentes, que este ano têm mesmo legendas em inglês ao seu dispor.