Al Capone foi o mais temido, impiedoso e colorido “gangster” do século XX e é natural que o cinema se tenha deixado fascinar por ele. Ainda Capone era vivo e já Hollywood o retratava – embora através de personagens fictícias – em filmes como “Bad Company”, de Tay Garnett (1931), com Ricardo Cortez, “O Pequeno César”, de Mervyn LeRoy (1931), com Edgar G. Robinson no papel principal, ou “Scarface” (1932), de Howard Hawks e Robert Rosson, com Paul Muni. Al Capone terá gostado tanto deste último, que conseguiu uma cópia para exibir aos amigos (“Scarface” era a sua alcunha no submundo, devido às cicatrizes de facadas que tinha na cara).

[Veja uma sequência de “Scarface” (1932):]

Capone já foi interpretado em filmes biográficos  de qualidade muito variável por atores como Rod Steiger (“Al Capone”, de Richard Lewis, 1959) Ben Gazzara (“Al Capone”, de Steve Carver, 1975) ou F. Murray Abraham (“Dillinger and Capone”, de Jon Purdy, 1995); e em fitas de “gangsters” por Jason Robards (“O Massacre de Chicago”, de Roger Corman, 1967), Robert De Niro (“Os Intocáveis”, de Brian De Palma, 1987) ou Ray Sharkey (“The Revenge of Al Capone”, de Michael Pressman, 1989). Mas nunca o tínhamos visto nos tristes preparos em que Josh Trank o apresenta em “Capone”, personificado por Tom Hardy.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja o “trailer” de “Capone”:]

Trank, que também assina o argumento, filma os últimos tempos da vida do “gangster” que aterrorizou Chicago, quando este, depois de ser libertado, sofria de paresia, uma forma de demência causada pela sífilis e vivia desde 1940 com a família e os guarda-costas numa mansão numa ilha na Florida, rodeada de agentes do FBI que o vigiavam e ouviam com escutas 24 horas sobre 24. “Capone” é um retrato por vezes desnecessariamente explícito da ruína física e mental do outrora temido, poderoso e rico senhor do crime, cuja voz está reduzida a um rouquejo obscenamente gutural, que está incontinente, tem dificuldade em distinguir a realidade das visões e é assaltado por memórias e fantasmas do passado.

[Veja uma entrevista com o realizador Josh Trank:]

Este Capone de Tom Hardy, pesadamente maquilhado, é uma figura grotesca, um “zombie” meio lúcido, meio delirante, ora ameaçador, ora vulnerável, que se passeia de pijama, roupão de seda e fraldas, um charuto ou uma cenoura na boca, falando inglês e italiano ou rosnando coisas ininteligíveis. Trank introduz na história dois elementos de potencial valor narrativo: um filho ilegítimo, Tony, de cuja existência apenas a leal e sofrida mulher do “gangster”, Mae (Linda Cardellini), tem conhecimento, e que faz lacónicos telefonemas ao pai de vez em quando; e uma fortuna de 10 milhões em dinheiro que Capone escondeu algures, mas se esqueceu onde por causa da doença. Daí que o FBI o tenha em vigilância constante e o seu médico (Kyle McLachlan) seja informador dos agentes federais.

[Veja uma cena do filme:]

Josh Trank substitui os convencionais “flashbacks” para o passado violento de Al Capone por uma sucessão de alucinações que se concluem sempre de forma sanguinolenta. E como não desenvolve os subenredos do filho ilegítimo e da fortuna escondida, “Capone” resume-se praticamente a um repetitivo, abjecionista e cabotino “one man show” de Tom Hardy, que deambula pela casa e pelos jardins, a delirar, falar entredentes, insultar quem o rodeia, ter ataques de fúria, crises de choro, descuidos intestinais e alucinações. E no final, a esvaziar a sua Thompson folheada a ouro sobre pessoas reais e imaginárias, cenoura nos dentes e cabelo em pé, roçando sem querer a auto-paródia. É para horrorizar ou para rir?

[Veja imagens do verdadeiro Al Capone:]

E numa manifestação de condescendência compungida para com os criminosos bem característica de Hollywood, Josh Trank sugere que no final da vida, Al Capone se arrependeu de uma vida de delinquência e sangue, e começou a ser atormentado pela sua consciência. Assim, o cada vez mais macerado Capone de Hardy não pára de vituperar e tratar de assassinos os seus guarda-costas, como se ele próprio nunca tivesse ordenado nenhuma execução, mutilação, tortura, espancamento ou qualquer outra brutalidade. Pouco falta para o filme nos pedir para termos pena dele. Além de medíocre no cinema, fastidioso na narrativa e minguado no drama, “Capone” é moralmente insalubre.