A companhia de teatro Casa Conveniente, com a qual colaborava o ator Bruno Candé, morto a tiro em plena rua, em Moscavide, enviou esta segunda-feira uma carta à imprensa à qual se associaram centenas de artistas, indignando-se contra o que considera ser uma “tentativa de silenciamento e desvalorização da gravidade deste crime por alguma imprensa e alguns sectores da sociedade portuguesa”.

O ator, que deixou três filhos, foi assassinado depois de já ter sido alvo de insultos racistas por parte do suspeito do homicídio, de acordo com a família. O jornal Público avançou entretanto, citando testemunhos próximos, que entre os insultos terão estado expressão como “preto, vai para a tua terra!”, “volta para a sanzala!” e “tenho armas do Ultramar em casa e vou-te matar”. As autoridades estão ainda a investigar as motivações do crime.

Entre as centenas de subscritores do texto, que se associam a este “sem quaisquer reservas”, estão personalidades como o humorista e ator Bruno Nogueira, as apresentadoras Filomena Cautela e Catarina Furtado, o ator César Mourão, o músico e sociólogo Chullage, o fadista Camané, o músico Bruno Pernadas e os atores Albano Jerónimo, Ângelo Rodrigues, Nuno Lopes, Lourenço Ortigão  e Afonso Pimentel.

Também as atrizes Alexandra Lencastre, Ana Guiomar, Eunice Muñoz, Catarina Wallenstein, Anabela Moreira, Beatriz Batarda, Benedita Pereira, Alexandra Solnado, Alba Batista, Joana de Verona e Carla Maciel, as cantoras e compositoras Aline Frazão, Carolina Deslandes e Ana Frango Elétrico (nome artístico da brasileira Ana Faria Fainguelernt), o encenador André E. Teodósio, o DJ e produtor musical Branko, os cantores e compositores Dino D’Santiago e Carlão e os humoristas Nuno Markl e Herman José estão entre os muitos outros subscritores da carta.

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Há uma “tentativa de tornar a vítima em suspeito”, acusam

Na carta, lê-se: “Temos assistido a uma agressão sistemática e porventura coordenada à memória do Bruno Candé — alguém que já em 2017 tinha sofrido um atropelamento e fuga que o deixou entre a vida e a morte, bastante debilitado e cujas sequelas estava corajosamente a combater — numa tentativa cínica e despudorada de justificar o injustificável, num desrespeito pelo estatuto de vítima que é punível pelo código penal da República Portuguesa (DL 48/95 Art. 185.o – ofensa à memória de pessoa falecida)”.

Esta tentativa de tornar a vítima em suspeito, acompanhada duma prolongada proteção da identidade do homicida, visa criar uma inversão na responsabilidade pelo crime que é perigosa para toda a sociedade e que pode ter consequências graves e incontroláveis”, lê-se ainda na carta enviada à imprensa.

Alegado homicida de Bruno Candé fica em prisão preventiva

O texto nota ainda que “a morte violenta do Bruno Candé, com uma evidente motivação racista, obriga-nos a olhar com atenção e cuidado para as circunstâncias históricas, sociais e políticas que tornam um acontecimento destes possível. Obriga-nos a confrontar fantasmas que nos deixam desconfortáveis porque nos devolvem uma imagem de nós próprios que não corresponde à que gostaríamos de ter”.

Porém, referem ainda os autores do texto, “se nós quisermos enquanto sociedade aproximar-nos dessa imagem idealizada teremos de ser capazes de estar à altura deste momento. E estar à altura significa tratar com dignidade a vítima, a memória de Bruno Candé e a sua família. Significa iniciar uma discussão pública que chega com décadas de atraso e na qual os indivíduos e as associações antirracistas têm sido vozes a clamar no deserto”.

Significa tomar uma posição inequívoca de rejeição, por parte de toda a sociedade portuguesa deste crime, da discriminação que lhe está na base e de todas as injustiças que lhe estão associadas. Temos esse dever e essa obrigação, não só enquanto cidadãos mas enquanto artistas”, remata a missiva.

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