Era agosto e estava um calor daqueles, que só um limoeiro recheado pode amenizar. No quintal de uma casa particular, em Cem Soldos, a organização do Bons Sons organizou um momento meio secreto onde Afonso Cabral — acompanhado por Pedro Branco e duas guitarras acústicas — tocava pela primeira vez, para gente fora do seu círculo pessoal, as canções de Morada, disco que tinha acabado de sair do forno. Foi há coisa de um ano e é-lhe inesquecível:

“Lembro-me muito bem e acho que dificilmente o vou esquecer, até porque foi a primeira vez de todas que toquei canções minhas para um grupo de pessoas foi nesse sítio, e logo com o meu filho a pedir o ‘Baby Shark’ — felizmente já não me pede muitas vezes. Não me vou esquecer. Lembro-me que quando acabei aquilo estava a tremer de medo, que é algo que nunca acontece. Se calhar para a maior parte das pessoas foi só um encontro inusitado organizado pelo festival e mais íntimo, mas para mim foi muito intenso”, explica. No fundo, aquela Rua da Feira foi a primeira morada do Morada.

A segunda etapa de Bons Sons foi um prémio de montanha pop

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Com o mesmo código postal e umas horas mais tarde, o membro dos You Can’t Win, Charlie Brown, apresentava de forma oficial o seu primeiro disco a solo, no Largo da Igreja de Cem Soldos. Foi há coisa de um ano e não eram poucas as testemunhas. Tal como agora não são curtas as saudades de voltar a palco:

“Saudades de concertos e do contacto com o público são enormes. Há cerca de duas semanas toquei com o Bruno Pernadas no São Luiz e foi assim o meu primeiro contacto com os concertos novamente e já nem me lembrava o quanto eu preciso disto, a sensação é inacreditável. E nesse caso específico do Bons Sons foi lindo, estrear um disco, neste caso o meu primeiro disco a solo e, portanto, toda uma ideia, no Bons Sons… Não podia pedir uma melhor estreia. É um festival que quem já lá foi sabe que tem um ambiente muito especial, até costumamos falar entre bandas e perguntar onde é que estão estas pessoas durante o resto do ano. É um apoio, um calor que recebes do lado de lá que é quase impossível que corra mal”, conta.

É, pois, o mesmo Afonso Cabral — não talvez o mesmo, porque nada ficou no mesmo sítio — que este dia 4, terça-feira, volta a mostrar Morada, um anos após a sua edição, no renovado Maria Matos, agora sob a alçada da Força de Produção.

[“Morada”, o tema que dá título ao álbum a solo de Afonso Cabral:]

Antes de aqui chegarmos, ao mundo do distanciamento social, Afonso ainda conseguiu tocar o disco em algumas ocasiões e fê-lo, de forma particularmente memorável, no CCB. Apresentou-se com a banda completa que gravou o disco e isso significa 13 pessoas em palco, com direito a cordas e sopros. Foi o único momento em que existiu a possibilidade de o fazer dessa maneira. Estava marcado um outro concerto do género, mas foi cancelado — ainda que, se tudo correr bem, o irão replicar em novembro, em Ponte de Lima. Portanto, o que mais aconteceu foi Afonso tocar o disco em trio — Pedro Branco na guitarra elétrica e António Vasconcelos Dias nos teclados — ou até sozinho.

Depois, instalou-se a paragem: “Tinha março e de abril bem preenchidos, não só com o meu projeto a solo, mas com outras coisas [estava em ensaios com os You Can’t Win, Charlie Brown para fazerem um novo disco; e estava no início da preparação de um espectáculo dedicado ao público infanto juvenil com Francisca Cortesão e outros amigos no LU.CA — Teatro Luís de Camões]. Já tinha concertos marcados e outros por aparecer, até porque no que diz respeito aos festivais nacionais só por essa altura é que se começa a marcar as bandas portuguesas, também porque são mais fáceis de marcar e, à partida, tinha alguma esperança, é o ano em que devia estar a promover o disco. Agora felizmente tem começado a reaparecer alguma coisa, alguns dos concertos adiados voltaram a ter data, nestas condições muito específicas que conhecemos”, diz o músico.

A ideia que transmite esta conjuntura toda, é quase a de que o primeiro disco a solo de Afonso Cabral não chegou a ser editado plenamente. Algo com o qual se apressa a não concordar: “Não sinto isso, porque ele saiu e ainda consegui tocar algumas vezes e que ele tivesse o mínimo impacto nas rádios e na imprensa, não que tenha sido um top de vendas, mas para aquilo que desejava não foi mau. Mas pronto, a expectativa é que o grosso dos concertos fossem neste Verão. Não sinto que não saiu, mas sinto que acabou por ser uma saída a meio-gás. É um trabalho que vai ser preciso fazer no próximo disco, é um bocadinho ingrato”.

[“Anda Estragar-me os Planos”, ao vivo no CCB:]

Como tantos outros criativos, se em casa estás em casa fazes. Durante o período de isolamento, recebeu as pistas do concerto do CCB pela mão de um dos técnicos e meteu as mãos na massa. Ao fazê-lo, gostou do que ouviu. Vai daí, fez uma seleção e editou o EP Ao Vivo no CCB. Mania — esta de editar discos tocados ao vivo — que parece já ter vivido dias de maior fulgor, sobretudo se pensarmos nas décadas de 70 e 80:

“Estou a lembrar-me daquele disco de Simon & Garfunkel no Central Park [The Concert in Central Park, 1982] e também andei numa fase Jeff Buckley, em adolescente, e havia montes de coisas dele ao vivo, já que discos não havia muito. Mas não foi uma coisa que me tivesse passado pela cabeça, foi uma coisa um bocado impulsiva, um dos técnicos mandou-me, ouvi aquilo e pensei: ‘isto está a soar bem’. E calhou na altura em que todos os dias recebia mails com concertos cancelados, que tinha muito tempo porque não saía de casa e misturei a coisa. Aliás, a ideia original até era só para a banda, mas modéstia à parte acho que estava a soar bem demais para ficar só para nós”, admite.

De resto, a ideia de partilha e de troca é algo que tem estado bastante presente em Afonso Cabral. Escreveu “Perto”, para o disco Branco, da essencial fadista Cristina Branco, depois escreveu, a meias com Francisca Cortesão, “Anda Estragar-me os Planos” para Joana Barra Vaz cantar no Festival da Canção, que foi, mais tarde cantado por Salvador Sobral e por Tim Bernardes. Quem também cantou uma canção de outro músico foi Afonso Cabral, quando usurpou amigavelmente “Maio” a Luís Severo. E essa dinâmica é bonita e recomenda-se. “Acho muito interessante, gosto de ouvir músicas dos outros e tentar fazer versões e coisas do género, mais para mim, normalmente. Acho giro que começa a aparecer mais, a Francisca Cortesão — não sei se numa entrevista ou numa conversa comigo — disse que era uma coisa muito brasileira, em que tens sempre n versões. Acho saudável, as músicas têm a ganhar, os artistas também, estou nessa onda, se gosto de uma canção e apetece-me tocá-la, por que não?”

O convite para o Maria Matos apareceu “como surgem todos os convites”. Com um email ou telefonema do agente. Já lá tinha ido tocar duas vezes enquanto membro da banda de Bruno Pernadas. E agora vai por sua conta. “Já não tocava há montes de tempo, disse logo que sim. Sabendo que será com estas condições específicas, meia sala, ser em agosto e em Lisboa, onde normalmente não há concertos, sobretudo em teatros. Nesse sentido pareceu-me um desafio. E até uma incógnita, ou seja, será que as pessoas vão estar em Lisboa? Dia 4 saberei. Mas é uma sala importante, nobre, era parvo dizer que não.” A surpresa são os convidados que trará: Cláudia Pascoal e Luís Severo. Esperam-se coisas boas.