A chegada de Jorge Jesus não foi propriamente pacífica até nos pormenores que deviam ser totalmente pacíficos. Exemplo prático: no dia em que aterrou em Tires, num jato privado onde viajou do Brasil ao lado do presidente Luís Filipe Vieira, a presença de (poucos) adeptos com duas faixas gerou grande discussão entre fóruns de adeptos do clube, com uns a defenderem que tinha sido um apoio espontâneo e outros a argumentar que não tinha passado de uma ação concertada. E nem a anunciada apresentação do técnico acalmou os contestatários, com cerca de 20 elementos a esperar a equipa depois da final da Taça no Seixal e outros a erguerem uma estátua junto à Luz que dizia “Jogadores mercenários à imagem da estrutura, pelo Benfica a militância tem que vencer a ditadura”.

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Este era o contexto da chegada de Jorge Jesus aos encarnados cinco anos depois de uma polémica saída para o rival Sporting entre críticas, processos e acusações à mistura. Um contexto que coincidia com a pior época do Benfica em termos de resultados da década, com troca de técnico pelo meio e uma quebra a pique da primeira para a segunda volta que custou não só o Campeonato (segundo em três anos para o FC Porto) mas a eliminação precoce na Liga Europa e a derrota na final da Taça de Portugal. Agora regressa, com cinco grandes diferenças.

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O recordista de jogos, de vitórias e de títulos que mudou o contexto

Jorge Jesus é o 14.º treinador a regressar ao Benfica ao longo da história mas apenas o segundo na era Luís Filipe Vieira na Luz depois de José António Camacho. O espanhol não teve muito sucesso na primeira passagem, teve ainda menos na segunda; Jesus ganhou dez títulos em seis épocas e ambiciona agora tornar-se apenas no quinto técnico a ser campeão nas duas passagens, depois de Otto Glória, Fernando Riera, John Mortimore e Eriksson. Mais do que tudo isso, Jesus chega como o treinador com mais títulos (dez), mais jogos (321) e mais vitórias (225) mas num contexto também diferente: nos quatro anos a seguir ao Campeonato de Trapattoni e até 2009, o Benfica ganhou apenas dois títulos (uma Taça da Liga e uma Supertaça); com Jesus, ganhou mais de 40% dos troféus nacionais, dez em 24; nos cinco anos a seguir, foram oito em 20. Ou seja, e em média, na última década as águias conquistaram quase metade das quatro provas nacionais em cada época. E essa é a “herança” de Jesus.

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Títulos, de (mais ou menos) um para dez em seis anos, de dez para 18 em cinco

Quando chegou ao Benfica vindo do Sp. Braga, Jorge Jesus deixou o mote para aquilo que iria fazer na Luz logo a partir do ano de estreia: “Estes jogadores vão jogar o dobro que jogaram no ano passado. E se calhar o dobro ainda é pouco”. O discurso era de confiança mas porque o treinador acreditou sempre nas suas ideias, muito mais do que pelo seu currículo: entre finais da Taça de Portugal perdidas e qualificações europeias, o técnico tinha ganho só uma competição que nem sempre é considerada no seu percurso, a Taça Intertoto. Agora, tudo é diferente: após ter ganho dez títulos no Benfica (três Campeonatos, uma Taça de Portugal, cinco Taças da Liga e uma Supertaça), somou ainda mais uma Taça da Liga e uma Supertaça no Sporting, uma Supertaça no Al Hilal e cinco troféus em pouco mais de um ano no Flamengo (Campeonato, Libertadores, Supertaça Sul-Americana, Supertaça do Brasil e Carioca). Ou seja, e contas feitas, o treinador do Benfica passou de um para dez e de dez para 18 troféus.

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O investimento na formação, que passou da teoria à prática

Essa foi uma das marcas mais vezes “coladas” a Jesus depois de sair das águias, talvez um pouco para justificar a saída e uma viragem de paradigma: a SAD tinha apostado forte no Benfica Campus mas esse investimento nunca teve correspondência a nível de lançamento de jovens da formação na equipa principal. Foi assim, não foi tanto assim: apesar dessas críticas, nomes como André Gomes, Nelson Oliveira ou Roderick foram apostas mais ou menos fortes do treinador ao longo de seis anos, tal como Gonçalo Guedes chegou com o técnico à formação A (houve depois outros que saíram sem grandes chances, casos de Bernardo Silva ou João Cancelo). Com Rui Vitória e Bruno Lage, esses jovens ganharam outro protagonismo, com Renato Sanches, João Félix, Rúben Dias, Ferro, Gedson Fernandes ou Florentino Luís, além de outros que passaram pelo Seixal como Ederson, Lindelöf ou Nelson Semedo. Essa é uma dúvida ou um desafio: haverá espaço para se manter a mesma linha de aposta?

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Mais dinheiro gasto em compras, mais dinheiro conseguido nas vendas

Outro dos pontos que foi provocando divisões nas análises aos seis anos de Jorge Jesus no Benfica passava pela necessidade ou não de fazer investimentos fortes no plantel dos encarnados: uns diziam que o técnico só conseguia ganhar se contratassem uma série de jogadores feitos que pudessem dar um plantel melhor do que os rivais, outros defendiam que todas as contratações feitas traziam sempre rentabilidade não só desportiva com vendas superiores às compras. Foi isso que aconteceu com o técnico entre 2009 e 2015, com 78 contratações em seis épocas por um total de 237 milhões de euros (cerca de 40 milhões por temporada) mas quase o dobro das receitas feitas nesse mesmo período (mais de 453 milhões, de acordo com os valores do Transfermarkt). O que se passou depois? O investimento manteve-se, teve até um recorde de mais de 70 milhões na última época, e também as vendas foram aumentando com um registo máximo de mais de 220 milhões em 2019 também graças a João Félix.

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De novo, um contrato de dois anos mas por valores bem diferentes

Naquela que acabou por ser uma das grandes surpresas na apresentação de Jorge Jesus, o técnico anunciou que tinha assinado contrato apenas por dois anos e não três, acrescentando ainda que Luís Filipe Vieira lhe ofereceu um vínculo de quatro temporadas mas que se fosse por si assinava apenas por uma época. O início da segunda era do técnico na Luz começa com a mesma duração do contrato mas valores completamente diferentes: Jesus chegou de Braga com um vencimento de 600 mil euros brutos por ano, renovou em 2010 para mais do dobro (1,5 milhões), saiu do Benfica a receber dois milhões brutos por época, aumentou o seu vencimento na passagem para Alvalade e daí para a Arábia Saudita, estava agora com um salário anual a rondar os 3,7 milhões de euros líquidos no Brasil e regressa por três milhões líquidos à Luz, menos do que recebia no Flamengo, a que acresce ainda mais 1,5 milhões líquidos para a restante equipa técnica. Ou seja, além dos dois milhões de euros acordados com os rubro-negros para a desvinculação do treinador, o Benfica vai investir 18 milhões de euros em salários em dois anos.