“O Burguês Fidalgo” é a peça que assinala o arranque da nova temporada dos espaços que integram o Teatro Nacional S. João, no Porto, sendo resultado de um convite de Nuno Cardoso, diretor artístico desta casa centenária, ainda antes da pandemia. A intenção era clara: propor à companhia portuense Palmilha Dentada, habituada a apresentar textos originais na área do humor e do absurdo, apresentar um clássico de Molière, considerado um dos mestres da sátira e da comédia teatral.

“Vale a pena voltar a um texto com 350 anos? Como vamos pegar num clássico e o que vamos fazer com ele?”, foram algumas interrogações que Ricardo Alves, encenador e dramaturgo da peça, fez questão de partilhar em entrevista ao Observador. Com carta branca e liberdade total para “fazer o que lhe apetecesse”, o desafio era desconstruir o próprio texto, recorrendo a diferentes referências e analogias. “É muito difícil fazer qualquer tipo de adaptação sem cair no ridículo. As referências mudaram, encontrar paralelos fica estranho.”

Para Ricardo Alves não há dúvidas de que um clássico não foi escrito para ser um clássico, mas sim para espalhar uma determinada época.

“Ao contrário do que as pessoas possam pensar, a maioria dos textos clássicos não são para ser feitos. Ou melhor, poderão ser feitos enquanto objeto histórico, mas é muito difícil e até um bocado inglório estar a adaptar um clássico aos nossos dias. Um clássico não foi escrito para ser um clássico, foi escrito para ser visto numa determinada época, com várias de referencias que o público consegue reconhecer, integra uma lógica, um modelo de vida, um raciocínio e uma dinâmica de valores que não são as nossas.”

A peça conta a história de um burguês que anseia ser fidalgo, numa altura em que a alguma da fidalguia já era falida e em que a burguesia começava a ganhar poder e importância na sociedade francesa, começando a ser a classe dominante. “No fundo, fala aquela angústia de alguém que quer ascender ao que não é e não se percebe bem porquê.”

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O encenador e dramaturgo considera que a mensagem “aparentemente simples” de Molière não está relacionada com a nossa realidade, apesar de poder ter transformado o desejo de Jordão, o fidalgo que quer ser burguês, num homem que quer ser um influencer, um youtuber, um ator de telenovela ou um concorrente de reality show, só para ser famoso. “Penso que hoje é o que temos mais parecido com a pseudo fidalguia que existia naquela altura. Mesmo assim, soar-me-ia a falso.” A opção de Ricardo Alves foi então seguir a história original e promover a reflexão sobre o que é dito naquela época e o que pode ser dito hoje sobre as mesmas questões.

A mudança de palavras e expressões faz com que a mensagem seja necessariamente diferente? Talvez não. Na desconstrução do espetáculo, os atores param a cena para explicarem alguns aspetos ao público sobre o que está a ver. Isto faz parte da gramática que a companhia nos tem habituado. “É uma forma surpreender, mergulhando o público numa história e tirando-o de la à força.”

Rotulada como uma comédia ballet, uma vez que tem uma forte componente musical, de dança e também de canto, em palco estarão seis atores  — Ivo Bastos, Mafalda Canhola, Maria Teresa Barbosa, Patrícia Queirós, Rui Oliveira, Tiago Araújo — a interpretar 17 personagens diferentes. “Por vezes tenho a sensação de que o texto é escrito apenas para justificar e para inserir na dramaturgia a própria a existência da música e da dança. Jordão, o protagonista, tem aulas de dança e canto e isso ajuda a compor a história”, refere o encenador.

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Um espetáculo com a criatividade limitada devido à Covid-19

Um mês de ensaios foi o suficiente para a peça ganhar forma, apesar das atualizações e adaptações constantes ao momento atual, onde o mais difícil no trabalho de atores parece ser sido “estancar a criatividade”.  “O que o mais difícil foi cortar-lhes a criatividade e estancá-la de forma a não fazer um espetáculo de duas ou três horas em época de pandemia. Seria inviável e até maldoso pedir ao público para estar duas horas de máscara a ver um espetáculo. Vamos manter a peça em uma hora e meia, limitando essa mesma criatividade, essa a fúria de fazer outras coisas”, explica Ricardo Alves.

O encenador assumiu que as cenas acontecem numa futuro próximo, onde ainda se registam hábitos para combater a Covid-19. Os figurinos com aros e barreiras físicas na boca garantem o distanciamento social, já as personagens desinfetam as mãos à entrada e saída de casa do protagonista ou quando tocam em objetos.

“Seria esquisito se colocasse dois atores a beijarem-se em palco, o público não iria estar a pensar nas duas personagens que se estavam a beijar, mas sim nos dois atores que estariam a correr um risco acrescido de contágio.” Essa preocupação de manter a distância e evitar o contágio tem o objetivo que a plateia não parte para outros pensamentos e para outras realidades.

Com “O Burguês Fidalgo”, a companhia Palmilha Dentada abre um novo capítulo na sua história, apresentado pela primeira vez desde a sua fundação, em 2001, um texto de um autor dos cânones do teatro ocidental. “Eventualmente iríamos lá, apesar de não termos muita vocação para fazer clássicos.”

Em comum, Ricardo e Molière têm o facto de serem ambos autores de comédia. “É sempre interessante perceber como se fazia comédia há 350 anos. Não sei se ele inventou alguns truques da comédia, como o fingir que são estrangeiros para fazer rir ou o disfarçarem-se de ricos para enganar alguém. Há uma série de piadas que são recorrentes na dramaturgia atual nos filmes e nas séries, não sei se foi Molière que os inventou ou não, mas há uma proximidade e algum gozo em revê-lo.”

Não sendo esta uma adaptação, mas uma desconstrução completamente assumida, o encenador espera que o público tire as suas conclusões e o autor não se zangue com ele. “Espero que Molière tenha mesmo sentido de humor, se não estará zangado comigo porque dou-lhe cabo de texto. Nem a mim me respeito enquanto autor, chego a cena e risco tudo e peço aos atores que eles próprios reescrevam. Iria ser para mim muito difícil assumir um texto qualquer como uma vaca sagrada e estar a trabalhar com ele sem ter essa liberdade.”

“O Burguês Fidalgo” pode ser visto de 6 a 20 de agosto no Teatro Carlos Alberto, no Porto. O preço dos bilhetes é de 10 euros.