Há uma cena de “O Adeus à Noite”, de André Téchiné, em que Bilal, um ladrão convertido ao islamismo e reciclado em recrutador de combatentes para o lado dos jihadistas na Síria, diz a Alex, o jovem francês que aliciou para a sua causa: “Quando se soube do ataque ao Charlie Hebdo, a prisão onde eu estava com os irmãos rebentou de júbilo.” Esta frase é tanto mais arrepiante porque os diálogos entre os jovens jihadistas ficcionais deste filme foram todos retirados por Téchiné das bocas de jihadistas reais com quem o realizador falou durante a preparação de “O Adeus à Noite”.

[Veja o “trailer” de “O Adeus à Noite”:]

O jovem francês em causa, Alex (Kacey Mottet Klein), vai visitar a avó, Muriel (Catherine Deneuve), que tem uma quinta e um centro equestre onde ela se mata a trabalhar, dizendo-lhe que vai para o Canadá com Lila, a namorada muçulmana, para lá viver e procurar emprego. Mas Muriel descobre que Alex foi convertido ao Islão por Lila e o verdadeiro destino do casal é a Turquia, de onde irão para a Síria, para o rapaz combater com os jihadistas. Chocada e desesperada, Muriel vai recorrer a tudo, mesmo à ajuda de um antigo jihadista que anda com pulseira eletrónica, para falar com o neto e dissuadi-lo de ir lutar para a Síria, onde quase de certeza morrerá.

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[Veja excertos da conferência de imprensa do filme no Festival de Berlim:]

André Téchiné pega aqui no tema dos jovens franceses que se tornam muçulmanos e vão lutar nas hostes do Estado Islâmico, e dramatiza-o num quadro narrativo muito seu: o da família média e da juventude sem norte. A mãe de Alex morreu num acidente de mergulho de que o rapaz sempre culpou o pai, que voltou a casar e foi viver para longe. O contacto entre ambos é nulo. O seu único laço familiar é com a avó, que vê irregularmente, e desistiu do curso. Sem referentes de família, sociais e espirituais que lhe deem valores, estabilidade e razão de ser, Alex anda à deriva, desenraizado. E deixa-se seduzir por uma religião e uma ideologia que lhe são em tudo alheias e o podem levar à morte num país distante, sob a bandeira de guerra de assassinos e terroristas.  

[Veja uma entrevista com o ator Kacey Mottet Klein:]

Em breves mas significativas cenas, Téchiné dá conta da dimensão da ameaça jihadista em França e da facilidade e naturalidade com que radicais e fanáticos islâmicos comunicam, se movimentam, convivem e passam despercebidos no dia-a-dia da sociedade. Homens e mulheres juntam-se numa propriedade para, separados, falarem sobre a decadência ocidental e a vida nas zonas de combate, rezarem e ouvirem a pregação de um imã; o mentor de Alex é um ladrãozeco vindo de um bairro “problemático”, e devoto hipócrita; e a namorada, que trabalha num lar de idosos, denuncia-se por pequenos detalhes, como o insistir em andar com os braços cobertos ou esquivar-se a fazer certas tarefas “impuras”, sem ninguém a confrontar com isso.

[Ouça o tema musical do filme:]

A Muriel de Catherine Deneuve, que faz aqui o oitavo filme com Téchiné, é infatigável na tentativa de, por todos os meios possíveis, chamar à razão o neto e salvá-lo de um destino trágico, opondo o seu amor e a sua devoção ao ódio e ao fanatismo, juntando-se assim às figuras femininas enérgicas e dedicadas àqueles que amam, que povoam os filmes do realizador. Ao personificar a desesperada avó, a solar Deneuve fá-la incarnar magnificamente o modo de vida, os princípios e os valores de que o neto se alienou. “O Adeus à Noite” permanece fiel, do princípio ao fim, a uma justeza na encenação das emoções e situações que nunca se deixa tentar pelo sentimentalismo fungado, e as personagens principais são seres humanos plausíveis e não cartazes ambulantes.

[Veja uma cena do filme:]

Percebe-se, no entanto, que talvez antecipando acusações de “islamofobia”, André Téchiné se tenha defendido delas de forma simplista e demonstrativa, quer através da figura idealizada do jihadista arrependido, quer da personagem do capataz de Muriel, muçulmano “exemplar”, integrado e assimilado, contraponto dos jovens fanáticos que rodeiam Alex e que reage com repugnância à conversão do jovem ou a qualquer menção a fundamentalistas islâmicos. Mas isto não tira comoção emocional nem verdade humana a este filme que trata pelo ângulo romanesco, e com frontalidade e limpidez, um tema de grande atualidade e ainda maior melindre socio-político, em que muitos ou nem se atreveriam a tocar, ou o fariam obedecendo à sebenta politicamente correta.